quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A noite evanescente


Por: Verlyn Klinkenborg
Noite estrelada/Van Gogh

Se os seres humanos se sentissem de fato à vontade sob a luz da Lua e das estrelas, atravessaríamos contentes a escuridão, com o mundo da meia-noite tão visível para nós quanto ele é para um vasto número de espécies noturnas. Mas somos criaturas diurnas, com olhos adaptados para viver sob a luz do Sol. Esse é um fato evolucionário básico, mesmo que as pessoas, em sua maioria, não se vejam assim, do mesmo jeito que também não costumamos nos pensar como primatas, mamíferos ou terráqueos. No entanto, é o único jeito de explicar o que fizemos com a noite: nós a manipulamos. Enchemos a escuridão de luz para que se tornasse mais acolhedora. Essa atitude não é diferente do represamento de um rio. Seus benefícios trazem conseqüências - a chamada poluição luminosa - cujos efeitos os cientistas só agora começam a estudar.

A poluição luminosa é em ampla medida resultado dos maus projetos de iluminação que deixam a luz artificial extravasar pelos lados e pelo céu, onde não é necessária, em vez de focar para baixo, como deveria ser. Sistemas de iluminação mal projetados devastam a escuridão da noite e alteram os níveis de luz, bem como os ritmos associados à luminosidade, aos quais muitas formas de vida, inclusive a nossa, estão adaptadas. Sempre que a luz artificial escapa pela natureza, algum aspecto da vida animal - migração, reprodução, alimentação - se vê afetado.

Durante a maior parte da história humana, a expressão “poluição luminosa” não faria sentido. Imagine você aproximando-se de Londres numa noite enluarada por volta de 1800, quando aquela era a cidade mais populosa da Terra. Cerca de 1 milhão de pessoas viviam ali, virando-se com velas, lamparinas, tochas e lampiões. Poucas residências eram iluminadas a gás, um sistema que só iria estar nas ruas e praças dali a sete anos. Alguns quilômetros antes de chegar lá era provável que você sentisse o cheiro de Londres ao mesmo tempo que avistava seu tênue fulgor coletivo.

Na maioria das cidades, parece que esvaziaram o céu de suas estrelas, deixando no lugar uma névoa pálida que expressa o nosso medo do escuro e lembra a claridade urbana das distopias de ficção científica. Estamos tão acostumados a essa onipresente bruma alaranjada, que a glória original de uma noite escura o bastante para fazer com que o planeta Vênus projete sombras na Terra se acha quase fora do âmbito da própria memória. E, no entanto, para além do teto opaco das cidades, jaz o resto do universo, indiferente ao nosso desperdício de luz - cardume de estrelas e planetas e galáxias a brilhar em meio a uma escuridão que parece infinita.

Nós acendemos a noite como se ela fosse um território desabitado, o que não poderia estar mais longe da verdade. Considerando apenas os mamíferos, o número de espécies noturnas é impressionante. A luz é uma força biológica atuando para muitos animais feito um ímã, através de um processo que vem sendo estudado por pesquisadores, como Travis Longcore e Catherine Rich, co-fundadores do Urban Wildlands Group (Grupo dos Sertões Urbanos), baseado em Los Angeles. Esse efeito é tão poderoso que os cientistas mencionam aves canoras e marinhas sendo “capturadas” por holofotes em terra ou pelas chamas de gás nas plataformas petrolíferas, circulando sem parar em torno da luz até cair. Ao migrar à noite, os pássaros se expõem à colisão com edifícios altos e iluminados.

Os insetos, como se sabe, aglomeram-se em torno das luminárias públicas, e o hábito de devorá-los tornou-se inerente à vida de muitas espécies de morcego. Em alguns vales suíços, o morcego-de-ferradura-pequeno começou a sumir depois de instaladas luminárias nas ruas, desalojados, talvez, pela invasão do morcego-pipistrela, que se alimenta dos insetos. Outros mamíferos noturnos, como gambá e texugo, saem à cata de alimentos de forma mais cautelosa sob a permanente lua cheia da poluição luminosa, pois se tornaram alvo fácil dos predadores.

Algumas aves, como pássaro-preto e rouxinol, cantam em horas incomuns na presença de luz elétrica. Os cientistas estabeleceram que os longos dias artificiais - bem como as correspondentes noites curtas - induzem ampla gama de pássaros à reprodução precoce. O dia mais longo leva a uma alimentação mais prolongada, e isso afeta os cronogramas migratórios. Uma população de cisnes-de-bewick que costuma invernar na Inglaterra adquiriu peso mais rápido que o normal, levando os animais a empreenderem sua migração siberiana mais cedo. A migração, como a maioria dos outros aspectos da vida dos pássaros, é um comportamento biológico que obedece a uma precisa demarcação temporal. Partir mais cedo pode significar uma chegada muito precoce ao destino, antes que as condições para a nidificação sejam ideais.

As tartarugas marinhas, que fazem ninhos e demonstram predileção natural por praias escuras, têm cada vez mais dificuldade de encontrá-las. Seus filhotes, que gravitam em direção a um horizonte marinho mais refletivo e luminoso, confundem-se com as luzes artificiais das praias urbanas. Só na Flórida, as perdas de filhotes contam-se em centenas de milhares todos os anos. Rãs e sapos que vivem perto de rodovias enfrentam níveis de luminosidade noturna que chegam a ser 1 milhão de vezes mais intensos que o normal, desregulando todos os aspectos de seu comportamento, inclusive os coros noturnos de acasalamento das rãs.

Entre todas as formas de poluição, a luminosa é talvez a mais fácil de remediar. Simples mudanças no desenho e na instalação das luminárias acarretam mudanças imediatas na quantidade de luz espalhada pela atmosfera, muitas vezes com conseqüente poupança de energia.

Tempos atrás, acreditava-se que a poluição luminosa afetava apenas os astrônomos, que precisavam enxergar o céu noturno em toda a sua esplendorosa claridade. Na verdade, alguns dos primeiros esforços cívicos para controlar essa forma de poluição - em Flagstaff, no Arizona, meio século atrás - foram empreendidos para proteger o Observatório Lowell, situado a cavaleiro da cidade. Flagstaff tornou mais rígidos seus controles desde então, sendo que, em 2001, foi declarada a primeira Cidade Internacional Sob Céu Escuro. Atualmente, o compromisso em controlar a poluição luminosa se disseminou pelo globo. Mais e mais cidades, e mesmo países, como a República Tcheca, se empenharam em reduzir a luminosidade indesejada.

Ao contrário dos astrônomos, a maior parte das pessoas não necessita em seu trabalho de um céu noturno não comprometido por luzes. Mas, a exemplo da maioria das criaturas vivas, nós também precisamos da escuridão, essencial para o nosso bem-estar, para o nosso relógio interno, tanto quanto a própria luz. A oscilação entre vigília e sono em nossa vida - um de nossos ritmos circadianos - nada mais é que a expressão biológica da oscilação da luz na Terra. São tão fundamentais esses ritmos à nossa existência que alterá-los é como mudar a força da gravidade.

Por todo o século passado, andamos realizando um experimento aberto com nossa própria vida ao estender o dia e encurtar a noite, provocando curto-circuitos na resposta sensorial do corpo humano à luz. As conseqüências de nosso iluminado mundo novo são observáveis com maior prontidão nos seres menos adaptáveis que vivem na luminescência periférica de nossa prosperidade. Mas também dos seres humanos a poluição luminosa pode cobrar seu preço biológico. Ao menos um novo estudo sugeriu correlação direta entre maiores taxas de incidência de câncer de mama em mulheres e a luminosidade noturna nas regiões em que elas habitam.

Ao fim e ao cabo, os seres humanos não se acham menos encurralados pela poluição luminosa que as rãs numa cacimba próxima a uma rodovia cheia de postes. Vivendo num clarão por nós mesmos fabricado, cortamos os laços que nos prendiam ao nosso patrimônio evolucionário e cultural - a luz das estrelas e os ritmos do dia e da noite. A poluição luminosa nos leva a perder de vista nosso verdadeiro lugar no universo e a esquecer a escala real de nossa existência, medida em grande parte em contraste com as dimensões de uma noite escura sob a curvatura da Via Láctea - a fronteira de nossa galáxia.
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Fonte: National Geographic Brasil

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