quarta-feira, 8 de abril de 2015


A meritocracia na raiz do conservadorismo da nossa classe média






POR QUE A CLASSE MÉDIA É REACIONÁRIA?
Charge política
O texto é longo, porém delicioso, para ser lido de uma só tacada, até perder o fôlego. O mais provável, caso seja nosso visitante assíduo, é que você não se enquadre nesta análise sobre o conservadorismo da classe média brasileira. Mas, certamente, irá lembrar de muitos familiares que costumam azedar os almoços de domingo e de certos amigos ou conhecidos que enchem o saco na mesa de um bar.
O ENIGMA DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
Por Renato Santos de Souza *
A primeira vez que ouvi Marilena Chauí bradar contra a classe média, chamá-la de fascista, violenta e ignorante, tive a reação que provavelmente a maioria teve: fiquei perplexo e tendi a rejeitar a tese quase impulsivamente.
Afinal, além de pertencer a ela, aprendi a saudar a classe média. Não dá para pensar em um país menos desigual sem uma classe média forte: igualdade na miséria seria retrocesso, na riqueza seria impossível.
Então, o engrossamento da classe média tem sido visto como sinal de desenvolvimento do país, de redução das desigualdades, de equilíbrio da pirâmide social, ou mais, de uma positiva mobilidade social, em que muitos têm ascendido na vida a partir da base.
A classe média seria como que um ponto de convergência conveniente para uma sociedade mais igualitária. Para a esquerda, sobretudo, ela indicaria uma espécie de relação capital-trabalho com menos exploração.
Distância entre ricos e pobres
Então, eu, que bebi da racionalidade desde as primeiras gotas de leite materno, como afirmou certa vez um filósofo, não comprei a tese assim, facilmente. Não sem uma razão. E a Marilena não me ofereceu esta razão.
Ela identificou algo, um fenômeno, o reacionarismo da classe média brasileira, mas não desvendou o sentido do fenômeno. Descreveu “O QUE” estava acontecendo, mas não nos ofereceu o “PORQUE”.
Por que logo a classe média? Não seria mais razoável afirmar que as elites é que são o “atraso de vida” do Brasil, como sempre foi dito? Mais, ela fala da classe média brasileira, não da classe média de maneira geral, não como categoria social.
Então, para ela, a identificação deste fenômeno não tem uma fundamentação eminentemente filosófica ou sociológica, e sim empírica: é fruto da sua observação, sobretudo da classe média paulistana.
E por que a classe média brasileira e não a classe média em geral? Estas indagações me perturbavam, e eu ficava reticente com as afirmações de dona Marilena.
Charge política
Com o passar do tempo, porém, observando muitos representantes da classe média próximos de mim (coisa fácil, pois faço parte dela), bem como a postura desta mesma classe nas manifestações de junho deste ano, comecei lentamente a dar razão à filósofa.
A classe média parece mesmo reacionária, talvez não toda, mas grande parte dela. Mas ainda me perguntava “por que” a classe média, e “por que” a brasileira? Havia um elo perdido neste fenômeno, algo a ser explicado, um sentido a ser desvendado.
Então adveio aquela abominável reação de grande parte da categoria médica – justamente uma categoria profissional com vocação para classe média – ao Programa Mais Médicos, e me sugeriu uma resposta.
Aqueles episódios me ajudaram a desvendar a espuma. Mas não sem antes uma boa pergunta!
Como pode uma categoria profissional pensar e agir assim, de forma tão unificada, num país tão plural e tão cheio de nuanças intelectuais e políticas como o nosso?
Estudantes de medicina e médicos parecem exibir um padrão de pensamento e ação muito coesos e com desvios mínimos quando se trata da sua profissão, algo que não se vê em outros segmentos profissionais.
Isto não pode ser explicado apenas pelo que se convencionou chamar de “corporativismo”. Afinal, outras categorias profissionais também tem potencial para o corporativismo, e não o são, ao menos não da mesma forma.
Então deveria haver outra interpretação para isto.
Radiografia de dinheiro
Bem, naqueles episódios do Mais Médicos, apesar de toda a argumentação pretensamente responsável das entidades médicas buscando salvaguardar a saúde pública, o que me parecia sustentar tal coesão era uma defesa do mérito, do mérito de ser médico no Brasil.
Então, este pensamento único provavelmente fora forjado pelas longas provações por que passa um estudante de medicina até se tornar um profissional: passar no vestibular mais concorrido do Brasil, fazer o curso mais longo, um dos mais difíceis, que tem mais aulas práticas e exigências de estrutura, e que está entre os mais caros do país.
É um feito se formar médico no Brasil, e talvez por isto esta formação, mais do que qualquer outra, seja uma celebração do mérito. Sendo assim, supõe-se, não se pode aceitar que qualquer um que não demonstre ter tido os mesmos méritos, desfrute das mesmas prerrogativas que os profissionais formados aqui.
Então, aquela reação episódica, e a meu ver descabida, da categoria médica, incompreensível até para o resto da classe média, era, na verdade, um brado pela meritocracia.
A minha resposta, então, ao enigma da classe média brasileira aqui colocado, começava a se desvelar: é que boa parte dela é reacionária porque é meritocrática; ou seja, a meritocracia está na base de sua ideologia conservadora.
Charge política
Assim, boa parte da classe média pensa da seguinte forma:
. é contra as cotas nas universidades, pois a etnia ou a condição social não são critérios de mérito;
. é contra o bolsa-família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um demérito desestimula o esforço produtivo;
. quer mais prisões e penas mais duras porque meritocracia também significa o contrário, pagar caro pela falta de mérito;
. reclama do pagamento de impostos porque o dinheiro ganho com o próprio suor não pode ser apropriado por um Governo que não produz, muito menos ser distribuído em serviços para quem não é produtivo e não gera impostos.
. é contra os políticos porque em uma sociedade racional, a técnica, e não a política, deveria ser a base de todas as decisões: então, deveríamos ter bons gestores e não políticos.
Tudo uma questão de mérito.
Charge política
Mas por que a classe média seria mais meritocrática que as outras?
Bem, creio que isto tem a ver com a história das políticas públicas no Brasil. Nós nunca tivemos um verdadeiro Estado do Bem Estar Social por aqui, como o europeu, que forjou uma classe média a partir de políticas de garantias públicas.
O nosso Estado no máximo oferecia oportunidades, vagas em universidades públicas no curso de medicina, por exemplo, mas o estudante tinha que enfrentar 90 candidatos por vaga para ingressar.
O mesmo vale para a classe média empresarial, para os profissionais liberais etc. Para estes, a burocracia do Estado foi sempre um empecilho, nunca uma aliada.
Mesmo a classe média estatal atual, formada por funcionários públicos, é geralmente concursada, portanto, atingiu sua posição de forma meritocrática.
Então, a classe média brasileira se constituiu por mérito próprio, e como não tem patrimônio ou grandes empresas para deixar de herança para que seus filhos vivam de renda ou de lucro, deixa para eles o estudo e uma boa formação profissional, para que possam fazer carreira também por méritos próprios.
Isto forjou o ethos meritocrático da nossa classe média.
Isca para atrair desempregados
Esta situação é bem diferente na Europa e nos EUA, por exemplo.
Boa parte da classe média europeia se formou ou se sustenta das políticas de bem estar social dos seus países, estas mesmas que entraram em colapso com a atual crise econômica e tem gerado convulsões sociais em vários deles; por lá, eles vão para as ruas exatamente para defender políticas anti-meritocráticas.
E a classe média americana, bem, esta convive de forma quase dramática com as ambiguidades de um país que é ao mesmo tempo das oportunidades e das incertezas; ela sabe que apenas o mérito não sustenta a sua posição, portanto, não tem muitos motivos para ser meritocrática.
Se a classe média adoecer nos EUA, vai perder o seu patrimônio pagando por serviços privados de saúde pela absoluta falta de um sistema público que a suporte.
Se advém uma crise econômica como a de 2008, que independe do mérito individual, a classe média perde suas casas financiadas e vai dormir dentro de seus automóveis, como se via à época.
Então, no mundo dos ianques, o mérito não dá segurança social alguma.
Vale quanto pesa
As classes brasileiras alta e baixa (os nossos ricos e pobres) também não são meritocráticas.
A classe alta é patrimonialista; um filho de rico herda bens, empresas e dinheiro, não precisa fazer sua vida pelo mérito próprio, portanto, ser meritocrata seria um contrassenso; ao contrário, sua defesa tem que ser dos privilégios que o dinheiro pode comprar, do direito à propriedade privada e da livre iniciativa.
Além disso, boa parte da elite brasileira tem consciência de que depende do Estado e que, em muitos casos, fez fortuna com favorecimentos estatais; então, antes de ser contra os governos e a política, e de se intitular apolítica, ela busca é forjar alianças no meio político.
Para a classe pobre o mérito nunca foi solução; ela vive travada pela falta de oportunidades, de condições ou pelo limitado potencial individual. Assim, ser meritocrata implicaria não só assumir que o seu insucesso é fruto da falta de mérito pessoal, como também relegar apenas para si a responsabilidade pela superação da sua condição.
E ela sabe que não existem soluções pela via do mérito individual para as dezenas de milhões de brasileiros que vivem em condições de pobreza, e que seguramente dependem das políticas públicas para melhorar de vida.
Então, nem pobres nem ricos tem razões para serem meritocratas.
Charge política
A meritocracia é uma forma de justificação das posições sociais de poder com base no merecimento, normalmente calcado em valências individuais, como inteligência, habilidade e esforço.
Supostamente, portanto, uma sociedade meritocrática se sustentaria na ética do merecimento, algo aceitável para os nossos padrões morais.
Aliás, todos nós educamos nossos filhos e tentamos agir no dia a dia com base na valorização do mérito. Nós valorizamos o esforço e a responsabilidade, educamos nossas crianças para serem independentes, para fazerem por merecer suas conquistas, motivamo-as para o estudo, para terem uma carreira honrosa e digna, para buscarem por méritos próprios o seu lugar na sociedade.
Então, o que há de errado com a meritocracia, como pode ela tornar alguém reacionário?
Bem, como o mérito está fundado em valências individuais, ele serve para apreciações individuais e não sociais. A menos que se pense, é claro, que uma sociedade seja apenas um agregado de pessoas.
Então, uma coisa é a valorização do mérito como princípio educativo e formativo individual, e como juízo de conduta pessoal, outra bem diferente é tê-lo como plano de governo, como fundamento ético de uma organização social.
Neste plano é que se situa a meritocracia, como um fundamento de organização coletiva, e aí é que ela se torna reacionária e perversa.
Charge - Classe Média
Vou gastar as últimas linhas deste texto para oferecer algumas razões para isto, para mostrar porquê a meritocracia é um fundamento perverso de organização social.
1- A meritocracia propõe construir uma ordem social baseada nas diferenças de predicados pessoais (habilidade, conhecimento, competência, etc.) e não em valores sociais universais (direito à vida, justiça, liberdade, solidariedade, etc.). Então, uma sociedade meritocrática pode atentar contra estes valores, ou pode obstruir o acesso de muitos a direitos fundamentais.
2- A meritocracia exacerba o individualismo e a intolerância social, supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as responsabilidades por seus sucessos e fracassos.
3- A meritocracia esvazia o espaço público, o espaço de construção social das ordens coletivas, e tende a desprezar a atividade política, transformando-a em uma espécie de excrescência disfuncional da sociedade, uma atividade sem legitimidade para a criação destas ordens coletivas.
Supondo uma sociedade isenta de jogos de interesse e de ambiguidades de valor, prevê uma ordem social que siga apenas a racionalidade técnica do merecimento e do desempenho, e não a racionalidade política das disputas, das conversações, das negociações, dos acordos, das coalisões e/ou das concertações, algo improvável em uma sociedade democrática e pluralista.
Lobo em pele de cordeiro
4- A meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável “ética do merecimento”, uma perversa “ética do desempenho”.
Numa sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada por pessoas que tem não só características diferentes mas também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes.
Mário Quintana merecia estar na ABL, mas não teve desempenho para tal. O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos achem que não merecessem.
Quintana, pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem ter tido que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem amealhou fortuna com a literatura foi o Coelho. Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho de mercado.
O José, aquele menino nota 10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 (tema de reportagem da ZH) merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado neste caso).
Na música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre merecimento e desempenho de mercado é abismal. Então, neste mundo em que vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham juntos, e talvez raramente convirjam.
Mas a meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo, não pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho supondo-se que ele seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser.
Desta forma, no mundo da meritocracia – que mais deveria se chamar “desempenhocracia” – se confunde merecimento com desempenho, com larga vantagem para este último como medida de mérito.
Charge política
5- A meritocracia escamoteia as reais operações de poder.
Como avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a certas posições de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação como os meios que levam a bons desempenhos são moldados por relações de poder; e o são decisivamente. Seria ingênuo supor o contrário.
Assim, os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no país são pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e científico.
Bons desempenhos no mercado literário são produzidos não só por uma boa literatura, mas por grandes investimentos em marketing; grandes sucessos no meio musical são conseguidos, dentre outras formas, “promovendo” as músicas nas rádios e em programas de televisão, e assim por diante.
Os poderes econômico e político, não raras vezes, estão por trás dos critérios avaliativos e dos “bons” desempenhos.
Charge política
Critérios avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme os interesses dominantes, e os interesses são a razão de ser das operações de poder; que, por sua vez, são a matéria prima de toda a atividade política.
Então, por trás da cortina de fumaça da meritocracia repousa toda a estrutura de poder da sociedade.
Até aí tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos, econômicos e sociais. O problema é que, sob o manto da suposta “objetividade” dos critérios de avaliação e desempenho, a meritocracia esconde estas relações de poder, sugerindo uma sociedade tecnicamente organizada e isenta da ingerência política.
Nada mais ilusório e nada mais perigoso, pois a pior política é aquela que despolitiza, e o pior poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é aquele que nega a si mesmo, que se oculta para não ser visto.
Poder financeiro global
6- A meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos “racionais”, e legitima pela razão toda a forma de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade).
A dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação.
7- A meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos resultados esperados.
Para a meritocracia não vale a pena ser o Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos. Vale mais a pena ser o Paulo Coelho e fazer uma literatura calibrada para vender.
Da mesma forma, muitos pais acham mais racional escolher a escola dos seus filhos não pelos fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo índice de aprovação no vestibular que ela apresenta. Estudantes geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas.
Cursos de pós-graduação e professores universitários não produzem conhecimentos e publicam artigos e livros para fazerem a diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e para ficarem bem ranqueados na CAPES e no CNPq.
Charge política
A meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações humanas.
Assim, em uma sociedade meritocrática, a racionalidade dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se ter um bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de dirigi-la para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.
8- Por fim, a meritocracia dilui toda a subjetividade e complexidade humana na ilusória e reducionista objetividade dos resultados e do desempenho.
O verso “cada um de nós é um universo” do Raul Seixas – pérola da concepção subjetiva e complexa do humano – é uma verdadeira aberração para a meritocracia: para ela, cada um de nós é apenas um ponto em uma escala de valor, e a posição e o valor que cada um ocupa nesta escala depende de processos objetivos de avaliação.
A posição e o valor de uma obra literária se mede pelo número de exemplares vendidos, de um aluno pela nota na prova, de uma escola pelo ranking no Ideb, de uma pessoa pelo sucesso profissional, pelo contracheque, de um curso de pós-graduação pela nota da CAPES, e assim por diante.
Embora a natureza humana seja subjetiva e complexa e suas interações sociais sejam intersubjetivas, na meritocracia não há espaço para a subjetividade nem para a complexidade e, sendo assim, lamentavelmente, há muito pouco espaço para o próprio ser humano.
Desta forma, a meritocracia destrói o espaço do humano na sociedade.
Distribuição de renda
Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que existem, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos.
Assim, embora eu tenda a concordar com a tese da Marilena Chauí sobre a classe média brasileira, proponho aqui uma troca de alvo.
Bradar contra a classe média, além de antipático pode parecer inútil, pois ninguém abandona a sua condição social apenas para escapar ao seu estereótipo.
Não se muda a posição política de alguém atacando a sua condição de classe, e sim os conceitos que fundamentam a sua ideologia.
Então, prefiro combater conceitos, neste caso, provavelmente o conceito mais arraigado na classe média brasileira, e que a faz ser o que é: a meritocracia.
Renato Santos de Souza é engenheiro agrônomo, mestre em Economia, doutor em Administração e professor da Universidade Federal de Santa Maria – RS. 


Leia mais: http://www.materiaincognita.com.br/a-meritocracia-na-raiz-do-conservadorismo-da-nossa-classe-media/#ixzz3Wm5Sw9Nw

quinta-feira, 19 de março de 2015

Árvores bebem nuvens, líderes devem estar bêbados

Fabio Olmos 

24082012-serra-finaA Serra da Mantiqueira vista das proximidades do Pico do Capim Amarelo, onde deveria ter sido criado um parque nacional. Nuvens abastecem as florestas nas encostas e nascentes das bacias do Paraíba do Sul e do rio Grande. A destruição causada pelo fogo e pela pecuária é evidente nas encostas e no vale abaixo. Foto: Fabio Olmos
É o óbvio que preferimos ignorar: apesar de 75% da superfície do planeta ser recoberta por água, menos de 3% desse total é água doce e, destes, apenas 0,5% é acessível.
Árvores existem há pelo menos 385 milhões de anos, uma época em que nossos ancestrais ainda eram meio peixes e viviam em brejos rasos. Houve um longo período de inter-relação entre árvores e clima – pense na bomba biológica que retira carbono da atmosfera e o coloca em depósitos de carvão. É tentador pensar na evolução de adaptações para que árvores não apenas sobrevivam ao clima, mas também o manipulem.
Em 19 de julho de 1836, o HMS Beagle ancorou na ilha de Ascension. Um dos passageiros era Charles Darwin e esta foi uma das paradas da reta final de uma viagem ao redor do mundo que mudaria a forma como compreendemos a história da vida.
Darwin explorou por alguns dias a ilha, um bloco de cinza e rochas vulcânicas a 1.600 km da África e uns 2.300 km de Recife. Lá fica Ascension, uma base naval britânica que apoiava as patrulhas contra o tráfico de escravos (atividade em que os brasileiros estavam muito engajados), e que foi descrita como desolada e árida, com poucas plantas "amigas do deserto".
Em 1843, o botânico Joseph Hooker, membro da expedição antártica do Erebus e Terror, também fez uma escala em Ascension. Amigo de longa data de Darwin, com o qual trocou muitas ideias, em 1847 Hooker propôs um plano de engenharia ambiental para aumentar a disponibilidade de água naquele deserto.
Uma ex-ilha árida
"Desde 1850, décadas de envio de mudas por navio e trabalho duro transformaram o topo de Ascension em uma floresta onde há fontes perenes de água"
Hooker convenceu o Almirantado a plantar diferentes árvores, bambus e arbustos nas partes mais elevadas da ilha. Ali os ventos carregados de umidade vindos do mar colidem com a ilha e sobem a alturas mais frias, o que faz a umidade condensar e formar nevoeiros.
Na ausência de vegetação a água que condensa é rapidamente perdida para a evaporação e escoamento superficial. Com árvores, a água pode se infiltrar no solo. E fontes podem jorrar.
Desde 1850, décadas de envio de mudas por navio e trabalho duro transformaram o topo da Green Mountain (Montanha Verde) de Ascension em uma floresta onde há fontes perenes de água. E onde vivem até mesmo sapos, também introduzidos.
O experimento em Ascension tira proveito do fato de árvores serem superfícies de condensação perfeitas para coletar a água disponível em neblinas e nevoeiros. Na verdade, a forma de algumas espécies deve ter evoluído exatamente para isto.
Estudos mostram que a captura de neblina por árvores pode aumentar a precipitação no solo em 40 a 70%. Isto permite que florestas cresçam em partes do Chile onde praticamente não chove e sustenta as sequoias da Califórnia, cujo porte gigantesco também facilita colher a água que chega com a neblina.
Cristas florestadas
"Boa parte da água que nutre a vegetação é obtida da "precipitação fantasma" colhida pelas árvores – e não registrada por pluviômetros."
No Brasil temos as "florestas nebulares" que crescem no alto de montanhas como os "brejos" nordestinos – ilhas verdes cercadas de Caatinga --, os tepui do norte da Amazônia, e a Cadeia do Espinhaço entre Minas Gerais e Bahia. Estas florestas e os riachos que brotam delas dependem em maior ou menor grau da umidade coletada diretamente das nuvens e das chuvas resultantes da interação entre massas de ar, relevo e árvores.
Mais próximas do epicentro da atual crise hídrica, serras como a do Mar, da Mantiqueira e de Paranapiacaba têm suas cristas cobertas por florestas que bebem das nuvens. Boa parte da água que nutre a vegetação é obtida da "precipitação fantasma" colhida pelas árvores – e não registrada por pluviômetros.
Esta região abriga cabeceiras de rios como Tietê, Paraíba do Sul, Paranapanema, Grande, etc. Não é preciso pensar muito para perceber o impacto destas florestas serranas naqueles rios.
Como visto em Ascension, as árvores – outras plantas e a fauna que vive no solo - permitem que a água que seria perdida por escoamento e evaporação se infiltre no solo, formando e recarregando os reservatórios subterrâneos que alimentam fontes e nascentes. Esse processo também acontece no Cerrado.
E sempre vale lembrar que árvores têm raízes e estas retém o solo e impedem o assoreamento de rios e reservatórios. Todo mundo sabe disso, mas é impressionante como é ignorado. Uma rápida olhada via Google Earth nas margens da maior parte dos reservatórios brasileiros mostra isso.
Árvores bombadas
20032011-cristalinoA transpiração das árvores se condensa na copa da floresta em Alta Floresta (MT). Foto: Fabio Olmos
"Plantas produzem compostos orgânicos voláteis que são liberados na atmosfera. É bem conhecido que estes são núcleos de formação de gotas de chuva no ar limpo"
Há outras formas das árvores fabricarem água além da simples interação da sua arquitetura com nuvens, gotas de chuva e solos.
Plantas produzem compostos orgânicos voláteis que são liberados na atmosfera. É bem conhecido que estes são núcleos de formação de gotas de chuva no ar limpo, mas carregado de umidade, que sopra do mar para o interior da Amazônia. As árvores, literalmente, semeiam a chuva que colhem.
Plantas também transpiram. De fato, árvores de grande porte são poderosas bombas que lançam água na baixa atmosfera e 80-90% da umidade sobre os continentes é resultado da transpiração das plantas. No planeta, a quantidade de água lançada na atmosfera necessária para isso é daordem de dezenas de milhares de quilômetros cúbicos, combinada com a energia solar de muitos e muitos terawatts.
Pouco reconhecido em modelos climáticos, isso tem várias consequências.
Aterrisagem dos rios voadores
"Florestas como a amazônica, congolesa e siberiana "sugam" massas de ar carregadas de umidade para o interior do continente"
Imagine uma floresta que transpira quilômetros cúbicos de água que cai como chuva apenas para ser lançada de novo na atmosfera. Então, adicione ventos que sopram para o interior. O resultado é uma correia transportadora de água que, mostram as pesquisas, leva pelo menos o dobro de umidade para o interior do que veríamos se os ventos soprassem sobre áreas sem florestas. Aqui na América do Sul o resultado são rios voadores, que transportam quilômetros cúbicos para o interior do continente e são responsáveis por parte da chuva no sul-sudeste do Brasil e Cone Sul.
Retire as árvores e os rios voadores não decolam. Ou desaguam no lugar errado.
De onde vêm os ventos que trazem o ar carregado de umidade? Uma pista é que a umidade atmosférica sobre aquelas florestas é alta mesmo em áreas distantes do litoral, enquanto áreas desmatadas têm menos umidade conforme mais distantes do oceano.
Este paradoxo sugere um papel ativo das árvores em trazer a umidade para o interior e que a transpiração não é apenas uma reação das árvores à necessidade de realizar fotossíntese. Ela também é uma ferramenta de manipulação do clima através da chamada "bomba biológica de umidade atmosférica".
A transpiração das árvores reduz a pressão atmosférica local e afeta o padrão dos ventos. O resultado é que florestas como a amazônica, congolesa e siberiana "sugam" massas de ar carregadas de umidade para o interior do continente, enquanto geram e estabilizam os ventos que trazem as chuvas. Destruir as florestas próximas à costa – o primeiro elo na correia transportadora – pode causar secas no interior.
O aumento da transpiração das grandes árvores (que bombeiam água de reservatórios subterrâneos) durante as secas apoia o conceito da interação ativa entre árvores e clima. Isso é exatamente o contrário do esperado, e uma indicação de que as árvores estão suando vapor para colher chuvas.
Os atentos à matéria notarão que percorri o mesmo caminho aberto por Antonio Nobre, pesquisador do INPA, que detalha melhor o que tentei explicar.
Seca de água
"A perda de florestas parece estar associada a chuvas decrescentes e pior distribuídas. Não é só a cidade de São Paulo que há muito não tem garoas"
Meu ponto é que embora muito tenha se falado sobre as chuvas e a Amazônia, não se pensa muito na relação entre o clima e nosso outro grande bloco de florestas, a Mata Atlântica e a Floresta com Araucária, que ocupava o litoral e praticamente todo o sul de Goiás, o interior de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e parte do Rio Grande do Sul.
Ali existiam florestas com árvores gigantescas como jequitibás e perobas-rosa que nada deixavam a desejar com relação a suas parentes amazônicas. E que certamente deveriam ser um elo na cadeia transportadora de umidade vinda do norte do continente.
A causa principal da falta de chuvas que compromete cidades e hidrelétricas nos estados de Goiás, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo é a formação de uma zona de alta pressão que forma uma redoma de ar seco. Essa zona de alta pressão desvia as frentes frias vindas da Antártica e os rios voadores e massas de ar carregados de umidade vindos da Amazônia e do Atlântico.
Será que um dos problemas não é a falta de florestas que baixariam a pressão atmosférica e semeariam nuvens para trazer as chuvas?
A perda de florestas parece estar associada a chuvas decrescentes e pior distribuídas. Não é só a cidade de São Paulo que há muito não tem garoas (e a precipitação fantasma associada).
Trocamos árvores por asfalto e concreto, pastagens e eucaliptos e elegemos administrações que acham que áreas verdes servem para populismo barato.
Campinas costumava estar no cinturão de florestas de jequitibás que cresciam sobre terra roxa. Ela e outras mostram uma nítida tendência de diminuição nas precipitações.
Não são só as mudanças climáticas, para as quais o Brasil colaborou muito queimando suas florestas. A perda de mecanismos de feedback entre o clima e as florestas provavelmente tem seu papel em tendências como a redução de chuvas e no aumento da frequência de eventos extremos.
Velhos e "novos" líderes
"A tradição consagrada de proteger florestas para ter água se perdeu e os iluminados que decidem nosso futuro hídrico parecem obcecados com soluções que envolvem mais concreto, canos, bombas e barragens."
A relação entre árvores e abastecimento de água é uma notícia velha. Imperadores moguls e chineses já proibiam o corte de florestas para preservar fontes de água e, hoje, cidades como Quito, Caracas e Nova Iorque garantem a segurança e qualidade de seus mananciais de abastecimento protegendo-os comunidades de conservação ou acordos com proprietários privados que tem o mesmo efeito prático.
Isso não só garante água limpa, mas também reduz em muito os custos com o tratamento, coisa importante para gestores responsáveis, incluindo os que desejam lucro. Mas mero detalhe quando a gestão é política. Afinal, por aqui gerações de prefeitos e governadores permitiram a ocupação de mananciais em troca de votos.
Quando o Rio de Janeiro imperial se viu às voltas com uma crise de abastecimento, D. Pedro II ordenou um projeto de restauração ambiental que produziu a Floresta da Tijuca. Aqui em São Paulo uma das áreas protegidas mais antigas é o Parque Estadual da Cantareira, originalmente conservado por ser um manancial de abastecimento. E o Parque Nacional de Brasília foi criado para conservar a primeira captação de água da cidade.
Até a Sabesp, de triste figura nesta história toda, antigamente tinha a política de proteger o entorno de reservatórios como os de Morro Grande e Ribeirão Grande, até hoje cercados de florestas, ao contrário de seus irmãos mais novos.
Itaipu, para reduzir o assoreamento de seu reservatório, tem um dos maiores programas de reflorestamento do mundo. Outras empresas como Furnas, CESP e CHESF também têm programas similares, mas o Google Earth não deixa mentir, elas estão longe de atingir um mínimo necessário. O tal "programa de recuperação" do São Francisco que o diga.
Infelizmente, a tradição consagrada de proteger florestas para ter água se perdeu e os iluminados que decidem nosso futuro hídrico parecem obcecados com soluções que envolvem mais concreto, canos, bombas e barragens. E só. Além de não ser garantia de sucesso porquê o cobertor da disponibilidade hídrica é curto, esta abordagem é limitada.
Canos não bastam. Podemos manipular os ecossistemas onde estão as bacias das quais dependem as grandes regiões metropolitanas brasileiras para aumentar nossa segurança hídrica. Podemos construir bombas biológicas, semeadores naturais de nuvens, captadores d água de neblina, infiltradores de água no solo, redutores de evaporação, amortecedores climáticos. Podemos usar ferramentas de verdadeira engenharia ambiental: é uma questão de plantar árvores.
Degradação vista de cima
"Bacias importantíssimas, como a dos formadores do Paraíba do Sul e do sistema Cantareira foram desmatadas de forma irresponsável e nas barbas de governos omissos"
Qualquer um que já voou do Rio para São Paulo ou de lá para Belo Horizonte percebeu uma região enorme coberta em boa parte por pastagens ridículas e áreas degradadas. No Vale do Paraíba e nas vertentes das serras do Mar, Mantiqueira e Espinhaço, em áreas muito destruídas, estão as cabeceiras e afluentes de alguns dos rios economicamente mais importantes do Brasil.
Bacias importantíssimas, como a dos formadores do Paraíba do Sul (olá amigos fluminenses) e do sistema Cantareira foram desmatadas de forma irresponsável e nas barbas de governos omissos. Comitês de bacias não foram eficientes (estou sendo gentil) para evitar a perda de florestas e para recuperá-las em extensão que faça diferença. Percorrer o Paraíba do Sul entre São Paulo e o Rio de Janeiro é a prova cabal.
A equação é simples. Devemos pesar se os benefícios de manter as coisas como estão, premiando quem destruiu o que não deveria, suplantam os riscos de deixar as maiores populações e economias do país sem água.
Seca de líderes
"O brasileiro tem dificuldades em aceitar a realidade mesmo quando ela dá uma bofetada na sua cara."
Já passou da hora de iniciarmos um projeto de restauração florestal em larga escala para transformar pastos, sapezais e plantações do Vale do Paraíba, Mantiqueira e Serra do Mar – e além - em florestas de verdade, com árvores de grande porte. É preciso reconstruir o que foi perdido para o ciclo do café, para o ciclo do gado, para abastecer a Companhia Siderúrgica Nacional e guseiras mineiras com carvão e, ironia, para a construção de reservatórios e ocupação de suas margens.
Para algumas bacias já sabemos o que fazer e quanto custa e há projetos iniciados. Mas ainda é pouco e desalentador ver como em São Paulo se fala mais em obras discutíveis do ponto de vista econômico e de engenharia do que em plantar chuva. Digo, árvores. Apesar de São Paulo dispor de alguns dos melhores grupos de pesquisa em restauração florestal.
A gestão da água e, por consequência, da energia, precisa mudar. O brasileiro tem dificuldades em aceitar a realidade mesmo quando ela dá uma bofetada na sua cara. Como o famoso corno apaixonado, continuamos ignorando o óbvio. Temos um desperdício inaceitável durante a distribuição, o reuso ainda é incipiente e há o freio de mão puxado quando se trata de despoluir rios e reservatórios usados como latrina por uma espécie que parece ter prazer em beber suas próprias fezes.
As demonstrações de ignorância desinibida durante a discussão do Código Florestal e, aqui em São Paulo, na votação da Lei do Desmatamento, mostram que para políticos e uma banda do agronegócio o problema não importa, nem se inviabilizar seus negócios. Os velhos hábitos falam mais alto.
Para isso, e o que me preocupa em uma situação de conflito de interesses, é preciso haver habilidade política e bom senso. Não adianta ter um coração valente e ser uma porta trancada. Também não adianta ter uma mente privilegiada e a bravura de um legume. Menos ainda ser O Cara quando seu legado é uma cleptocracia que afundou a economia e rachou o país.
guerra civil na Síria é o resultado da crise climática caindo sobre um regime político não representativo e inepto somado a uma população jovem sem perspectivas em meio a uma crise econômica.
Um país com democracia forte e economia saudável cuida bem dos seus recursos essenciais; água e democracia são importantes.
 Transcrita do site http://www.oeco.org.br/olhar-naturalista

quarta-feira, 4 de março de 2015

O mapa da conspiração no Brasil segundo o padrão da CIA, por J. Carlos de Assis



Temos em curso no Brasil uma conspiração destinada a desestabilizar o Governo Dilma sob o pretexto da luta contra a corrupção. É da mesma natureza das iniciativas para promover mudanças de regime na chamada Primavera Árabe, com a diferença de que, nesses casos, os regimes eram ditaduras estabilizadas , enquanto no nosso caso somos uma democracia vulnerável. Como não é possível estimular um golpe em favor de democracia que já existe, a desculpa é o combate à corrupção que se pretende vincular aos presidentes Lula e Dilma.
Pessoas de boa fé pensam que tal conclusão é precipitada. Eu próprio costumo rejeitar teorias conspiratórias, porém só até o ponto em que as evidências começam a falar mais alto. Vou tentar mostrar a evidência de uma conspiração em curso no Brasil usando como principal referência a principal revista de política externa dos Estados Unidos, a “Foreign Affairs”, insuspeita de antiamericanismo. Tomo como referência ensaios da edição de setembro/outubro sobre a crise na Ucrânia e sobre o golpe contra Allende no Chile há 40 anos.
Relativamente à Ucrânia, a revista diz abertamente que a crise é culpa sobretudo do ocidente, ou seja, dos Estados Unidos. Resulta da ambição da OTAN, sob liderança americana, de empurrar suas fronteiras para o Leste incorporando sucessivamente quase todos os estados da órbita da antiga União Soviética. Assim, em 1999, foram incorporadas a República Checa, a Hungria e a Polônia. Sempre sob protestos russos, em 2004 foram anexadas Bulgária, Estônia, Latvia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia. Em 2009, foi a vez de Albânia e Croácia.
Essas incorporações violaram compromissos formais estabelecidos com Gorbachev no processo de reunificação da Alemanha, para a qual foi essencial a concordância russa. A Rússia não reagiu além de protestos formais, parte porque estava ela própria internamente fragmentada, parte porque todos esses países incorporados à OTAN não fazem fronteira direta com ela, exceto os pequenos países bálticos. Em 2008, contudo, a OTAN manifestou a intenção de incorporar também as fronteiriças Geórgia e a Ucrânia, o que significava acabar de cercar a Rússia.
Nenhum líder russo aceitaria ou aceitará o cumprimento dessa ameaça no seu próprio quintal, muito menos um estrategista da estatura de Putin. Quando o presidente da Geórgia, simpatizante da entrada na OTAN, resolveu reincorporar as províncias rebeldes de Abkhazia e Ossétia do Sul, Putin reagiu imediatamente e as invadiu. Deixou claro, nesse movimento, que não aceitará a incorporação da Geórgia, um país limítrofe da Rússia, à OTAN, a não ser fragmentado. Assim como deixou claro a Bush, segundo um jornal russo, que “se a Ucrânia fosse admitida na OTAN ela cessaria de existir.”
“Foreign Affairs” faz um retrato realista do que aconteceu daí em diante na Ucrânia. No processo de criar a atmosfera “democrática” favorável à adesão à União Europeia, atalho para a entrada na OTAN, os Estados Unidos despejaram desde 1991 mais de US$ 5 milhões em instituições de formação de opinião no país, para - segundo Victoria Nulan, a secretária de Estado assistente para a Europa e a Eurásia -, criar para a Ucrânia “o futuro que ela merece”. Uma instituição especial, a National Endowment for Democracy, promoveu mais de 60 projetos para minar a estabilidade do Governo legítimo de Yanukovych, pró-russo.
O presidente dessa instituição, Carl Gershman, não deixou muita dúvida quanto ao objetivo último desse movimento. Numa entrevista ao New York Times, declarou que “a escolha da Ucrânia de integrar a Europa vai acelerar a morte da ideologia do imperialismo russo que Putin representa”. De forma ainda mais explícita, acrescentou que “os russos também enfrentam uma escolha, e Putin pode encontrar-se no lado perdedor final não no exterior do país mas dentro da própria Rússia”. Putin reagiu a esse tipo de provocação invadindo a Crimeia e promovendo o referendo para sua anexação à Rússia.
Estou transcrevendo trechos dessa longa reportagem porque sei que os brasileiros não merecem de nossa imprensa, escrita ou televisiva, um noticiário imparcial sobre o que está acontecendo na Ucrânia. Nossa grande imprensa é em relação aos Estados Unidos mais governista, em qualquer circunstância, do que a própria imprensa da elite americana. Mas o que quero acentuar é que o governo americano tem uma estratégia clara de sustentação de sua dominação no mundo e está disposto a pagar qualquer preço, sobretudo se o preço foram instituições ou vidas de outros povos, para firmar seus objetivos estratégicos.
É nesse ponto que convém examinar a situação brasileira atual. Os Estados Unidos restabeleceram a Guerra Fria e elegeram a Rússia como inimigo estratégico, já que a Rússia, ainda uma potência nuclear de primeira linha, é o único poder estratégico, junto com a China na economia, capaz de rivalizar com eles. Ora, nós estamos cometendo a audácia de nos aproximarmos da Rússia e da China no âmbito dos BRICS, criando uma alternativa de desenvolvimento no mundo, tanto do ponto de vista geoeconômico quanto geopolítico. Para quem quer levar o braço da OTAN até as planícies ucranianas, esse é um grande desafio, considerando o fato de que Brasil e África do Sul são considerados quintais relativamente bem comportados do poderio americano.
Se para eliminar o risco de uma maior aproximação com a Rússia for necessário desestabilizar o Governo brasileiro, apelando para uma inventada condescendência com a corrupção, como aconteceu na Ucrânia, os Estados Unidos não se farão de rogados. Eles tem aliados poderosos aqui dentro como leais quinta-colunas. Por algum motivo gravaram os telefones da Dilma. Já no Chile, de acordo com documentos desclassificados depois de 40 anos da deposição de Allende, verifica-se, segundo a mesma “Foreign Affairs”, que o golpe e o assassínio de Allende foram orquestrados por Washington, sob coordenação de Henry Kissinger. Começou com o assassinato do general anti-golpista Schneider, pago pela CIA, e teve durante todo o tempo da conspiração a instigação permanente do jornal “El Mercurio”, que para isso recebeu da CIA US$ 11 milhões em dinheiro de hoje. A “Veja”, como todos sabem, passa por dificuldades financeiras. Não seria o caso de se examinar quem está sustentando suas infâmias destinadas a desestabilizar o Governo brasileiro?
J. Carlos de Assis - Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEP
Fonte: http://jornalggn.com.br