sábado, 31 de outubro de 2009

AS IMAGENS DO QUOTIDIANO OU DE COMO O REALISMO É UMA FRAUDE






António Preto
Jens Astrup, “Mona Gregersen espera pelo carro”, Vårst, Himmerland, 11h05 (“Histoires d’un jour” – Maison du Danemark)/
Joel Meyerowitz, “New York City, 5th Ave. and 57th St.”, 1975
Mesmo depois de submetida, no domínio da criação artística, à avaliação crítica da sua aptidão eminentemente documental, a fotografia nunca deixou, desde o seu início, de se propor como um eficaz instrumento de medição do mundo, reclamando ainda um inquestionável valor testemunhal. As contingências físico-químicas da fotografia analógica afiançam a realidade presencial das coisas: asseguram que o que quer que figure na imagem fotográfica tenha forçosamente de ter estado diante da objectiva, garantem uma relação indicial da imagem (real) com os objectos (reais). A fotografia sustenta-se assim, isso mesmo o observam Rosalind Krauss e Susan Sontag, num compromisso inquebrantável com a realidade física, instância categórica que confere à imagem fotográfica veracidade material, objectividade crítica e factualidade histórica. Por mais representações pictóricas e documentos escritos que tenham sido produzidos sobre Cristo, a sua historicidade só seria irrefutavelmente provada – considerando este enquadramento teórico e apesar de toda a controvérsia – com o Sudário de Turim ou com o véu de Santa Verónica (do latim, “vero icon”, ou seja, “verdadeira imagem”), significativamente, padroeira dos fotógrafos.

Criticada por Baudelaire (e mais tarde por Benjamin) por não passar de uma técnica automática de reprodução mecânica da realidade, um “refúgio de todos os pintores frustrados”, menosprezada por Ingres (que, no entanto, utilizava daguerreótipos de Nadar para a execução dos seus retratos e confidenciava: “a fotografia é melhor do que o desenho, mas não é preciso dizê-lo”), reduzida à função de mero instrumento e à qualidade de produto industrial, a fotografia não conseguiria, no entanto, destacar-se inteiramente dos estereótipos pictóricos. Contrariando os receios iniciais de que a fotografia se impusesse em substituição das formas tradicionais de representação, os fotógrafos centrar-se-iam na exploração de novos recursos, principalmente químicos, e de novas técnicas de enquadramento e de iluminação, distanciando-se do realismo da fotografia primitiva, tida como “cópia do real”, para se deterem na opacidade da imagem, passando assim a privilegiar abordagens subjectivas, interpretativas e discursivas, mais ajustadas às pretensões autorais.

No sentido inverso, a fotografia participaria com a pintura (liberta das concepções académicas sobre a composição), na revolução do olhar: casual e ordinário, capaz de ver a realidade em fragmentos e de apreciar e decompor os gestos e os movimentos. Se, por um lado, a fotografia se cinge necessariamente a um referente ocular, por outro, consegue tornar visível o que escapa à visão humana. A fixação da imagem e a congelação do movimento possibilitam uma observação prolongada dos objectos, a gestão dos períodos de exposição permite a sobreposição de tempos e de imagens. A fidelidade ao referente, mas também a falha técnica, dão do mundo imagens novas e inesperadas: o poder de desocultação da fotografia revela a aura dos retratados e, nalguns casos, mesmo os fantasmas que os circundam: o mundo é um lugar de simultaneidade.

Implicada na passagem do Romantismo ao Realismo e, portanto, do “belo idealizado” ao “real objectivo”, a fotografia retrata a emergência da burguesia e do proletariado, grupos carecidos de uma imagem social, partilhando com a pintura e com a literatura o imperativo de dar visibilidade à comédia humana, ao quotidiano das classes trabalhadoras. Courbet abandona o colorismo romântico em favor do cinzentismo desassombrado da vulgaridade, Zola, naturalista, radicaliza a crueza narrativa de Balzac e legitima a veracidade objectiva de “Germinal” com a experiência de dois meses de trabalho mineiro na extracção de carvão. A fotografia, por seu turno, reveste-se, naquilo que a liga fatalmente ao existente, de uma aura de “arte total”, nas palavras de Baudelaire, “um Deus vingativo que realiza o desejo do povo”: a democratização da imagem, a participação na verdade das coisas, o direito ao reflexo.

Durante o próximo mês de Novembro decorrerá, em Paris, a 14ª edição do “Mês da fotografia”, organizada pela Maison Européenne de la Photographie. Antecipando o que será o programa do encontro, o Jeu de Paume apresenta, no espaço Concorde, a primeira grande retrospectiva do fotógrafo americano Lee Friedlander (comissariada por Peter Galassi para o MoMA de Nova Iorque) e ainda, uma exposição de Joel Meyerowitz, “Out of the Ordinary, photographies 1970-1980”, patente no Hôtel de Sully.

Repórteres do quotidiano, Friedlander e Meyerowitz retratam, embora de modos diferentes, a vida urbana na América dos anos 60 e 70, tendo, como seria de esperar, em vista uma crítica à sociedade de consumo, conduzida nos moldes mais usuais da Pop. Fortemente influenciados por “The Americans”, de Robert Frank, descobrem, nessa abordagem etnográfica, uma América heterogénea, descontínua e desarticulada, contrastante com as imagens de estabilidade produzidas por Walker Evans e Berenice Abbott nas duas décadas anteriores.

Lee Friedlander participa, em 1966, na exposição colectiva “American Social Landscape” (apresentada em Rochester) e, no ano seguinte, vê o seu trabalho integrado em “New Documents” (MoMA), exposição conjunta com Diane Arbus e Garry Winogrand que visava dar a ver uma geração de fotógrafos empenhados num olhar objectivo sobre a América. A partir desta experiência, a noção de paisagem social passará a definir a sua pesquisa fotográfica, centrada na dissolução da figura humana na complexidade do espaço urbano. A justaposição e sobreposição de reflexos, transparências e projecções origina uma multiplicação de pontos de vista e enquadramentos ao mesmo tempo que, neutralizando a profundidade de campo, conglutina indiferenciadamente no plano da imagem múltiplos fragmentos entrecortados (incluindo-se aí a presença do próprio fotógrafo) que se articulam dispersivamente, produzindo novos sentidos e reverberações, entre o anedótico e o acidental. A abordagem caleidoscópica da paisagem social é unificada num olhar reconciliador sobre a natureza e, particularmente, sobre as plantas (motivo central da fotografia mais recente de Friedlander): embora preservando a complexidade barroca do espaço urbano – agora transformada em puro formalismo – a paisagem americana, apresentada pelo autor num estado edénico, é o espaço moralizador, de todos os retornos, de toda a redenção.

Joel Meyerowitz assume, relativamente à fotografia, uma postura modernista, mais intuitiva e electiva, valorizando, à maneira de Henri Cartier-Bresson, o “instante decisivo” como epifania e síntese tanto do inesperado como do banal. O autor confessa-se atraído “pela ideia um pouco perversa de utilizar a máquina fotográfica, capaz de tudo representar, para representar quase nada”. Com Harry Callahan e William Eggleston, Meyerowitz será um dos primeiros a empreender uma pesquisa estética sistemática sobre a fotografia a cores. Contrariando a supremacia do preto e branco na fotografia artística até à década de 60, Meyerowitz interessa-se pela cor como acrescento de informação e parte integrante do que define como field photographs: amplos enquadramentos sobre a arquitectura e o espaço urbano que abrem o campo a acontecimentos múltiplos e simultâneos onde todos os pormenores são significativos.

O que liga Meyerowitz e Friedlander é o que percorre várias das exposições recentemente apresentadas em Paris, o que parece ser o denominador comum de muita da fotografia contemporânea. Na Maison du Danemark pôde ver-se, até 15 de Outubro último, a exposição “Histoires d’un jour”, selecção de 130 fotografias da Dinamarca captadas por 100 fotógrafos profissionais ao longo das 24 horas do dia 18 de Agosto de 2005. Pedia-se aos participantes da maratona-concurso que as fotografias, identificadas com a hora e o local de captação, fossem “espontâneos, sem mise en scène nem retoques” para, com essas histórias “quotidianas ou insólitas”, mas, em todo o caso, verdadeiras, obter um retrato “vivo” do dia-a-dia da Dinamarca. O resultado da experiência não passa da mera confirmação do que se entende, no norte da Europa, por um dia corrente: com a maior ligeireza possível, todos os acontecimentos registados – que vão, naturalmente, do nascimento à morte, passando pelo pequeno-almoço em família às 8 horas da manhã, o passeio à beira mar, a cerveja ao fim da tarde e o sexo à noite – são, indiferenciadamente, nivelados pelo largo crivo do quotidiano: tudo é igual a tudo e, sobretudo, igual ao que já se sabe. No sentido oposto, a exposição “Un autre monde”, selecção da 6ª edição dos encontros africanos de fotografia, Bamako 2005, patente na Bibliothèque nationale de France, pretende questionar, pelo pluralismo, assente na mudança de pontos de vista, as representações estereotipadas da africanidade. Reunindo o trabalho de quinze fotógrafos originários de nove países de África e do Oceano Índico, “representativos da criação contemporânea nesses territórios”, Simon Njami, comissário da exposição, sustenta que a alteridade não corresponde necessariamente ao que está longe, ao estrangeiro, mas ao que se esconde, no quotidiano, de um olhar menos atento. A fotografia, que deverá procurar abster-se de uma objectividade narrativa e da fixação de uma pretensa “realidade real”, incumbindo-lhe, pelo contrário, perspectivar um mundo outro, paralelo, seria pois um instrumento privilegiado para desvendar a excepcionalidade no quotidiano. O que se verifica, no entanto, é que a procura desse “outro mundo”, fatalmente pitoresco ou ocidentalizado, sucumbe aos padrões estéticos da fotografia contemporânea, reproduzindo, sem contemplações, todos os lugares-comuns do olhar do ocidente sobre África.

Apostada no conhecimento da vida, das existências comuns, e na figuração de um real tangível (sendo que todas as apelidações do real são ideológica e politicamente dirigistas, porque conclusivas), a fotografia veio ocupar o lugar da pintura de género: a celebração dos costumes – agora convertida em cientificidade documental, não isenta de uma pesada carga demagógica – apresenta-se como prova segura da historicidade do quotidiano. O quotidiano é, por definição, esse estado sem sobressalto em que nada acontece, paliativo para todas as inquietações, princípio paralisante dissuasor de todas as mudanças. É o quotidiano, e não o estado de excepção, que assegura a manutenção do poder. O olhar sobre o quotidiano é assim um olhar invariavelmente descomprometido, que se exterioriza sem problematizar: a guerra em determinados territórios, como a prosperidade noutros são, para esse olhar, evidências quase naturais. Não se confundam, porém, as imagens de uma banalidade institucionalizada com a banalização das imagens: se o mundo real não é a preto e branco nem a cores, qual será pois a verdadeira imagem do quotidiano? Não será essa imagem uma imagem impossível?
Conhecidos os problemas sociais da França contemporânea, que quotidiano se dá a ver hoje em Paris? Quais são as suas imagens?

Uma semana depois da “Nuit Blanche”, evento megalómano e populista organizado anualmente pela Câmara de Paris que pretende dar a ver (e impor), espalhando-se por todos os bairros da cidade (mesmo pelos mais desfavorecidos), a jovial arte contemporânea francesa, aproximando-a assim de um público generalizado, habitualmente afastado das práticas artísticas, a mesma Câmara de Paris pretende agora obrigar a encerrar, com força policial, a La Genérale, espaço de uma fábrica abandonada há anos no centro de Paris, ocupado como lugar de trabalho, há cerca de um ano, por mais de 100 artistas (ligados às artes plásticas, ao teatro, cinema, vídeo, etc.) que intervinham activamente, com mostras semanais, no quotidiano estético e político parisiense.
Está feito o retrato.
ArteCapital

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