terça-feira, 31 de agosto de 2010

Jornalismo Ambiental: da marginalidade às capas de jornais
Entrevista especial com Dal Marcondes

Nos últimos anos, o conceito de sustentabilidade passou a permear muitos setores da sociedade. Ele evoluiu, principalmente, de um parâmetro utilizado pelas ONGs para indicadores empresariais, como o Índice de Sustentabilidade da Bovespa (ISE), os indicadores Global Reporting Iniciative (GRI), que baliza relatórios empresariais de sustentabilidade, e os indicadores Ethos (do Instituto Ethos), entre outros. No entanto, para Dal Marcondes, são informações e dados complexos que precisam de uma base de conhecimento estruturada, para que não se percam em devaneios ideológicos ou de interpretações sem objetividade.

Na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, o jornalista Dal Marcondes, diretor da Agência Envolverde, fala sobre a importância da informação sobre meio ambiente e sustentabilidade para a estruturação de um modelo de desenvolvimento com compromissos claros em relação ao futuro. “As pessoas ainda têm uma relação muito esquizofrênica com o tema sustentabilidade”, opinou.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Em sua opinião, como a informação pode ser considerada um fator relevante para o desenvolvimento da ideia de sustentabilidade?

Dal Marcondes – Informação é o fator-chave para a estruturação de uma plataforma de conhecimento capaz de influir sobre decisões estratégicas, seja de empresas, governos ou sociedade. Não é possível fazer a transição para um modelo de desenvolvimento limpo, baseado em novas tecnologias e em uma ciência integrada, sem uma base de informação e conhecimento social, científico e econômico capaz de mostrar caminhos diferentes e consistentes com as necessidades do futuro, e não com os pressupostos e preconceitos do passado.

IHU On-Line – O jornalismo ambiental evoluiu?

Dal Marcondes – Muito. Há dez anos, o jornalismo ambiental era uma comunicação de nicho, focado em pequenos veículos que falavam para muito pouca gente, principalmente iniciados. Hoje, o jornalismo ambiental conta com excelentes veículos especializados, mas, principalmente, está presente em grandes veículos de comunicação com todos os suportes possíveis. É TV, Rádio, jornais e revistas, além do suporte global da Internet. A cobertura ambiental também saiu de páginas marginais dos veículos, como a geral, que disputava espaço com buracos de rua e outras pequenas mazelas para ser estampada nas primeiras páginas e nos cadernos de economia. Houve uma evolução. Ainda pode melhorar muito em qualidade de enfoque, mas já ocupa espaços nobres.

IHU On-Line – O que fez o tema meio ambiente ter mais espaços nas pautas dos grandes meios de comunicação?

Dal Marcondes – Uma pauta ganha destaque a partir do interesse da sociedade. O meio ambiente está aí, as mudanças climáticas, suas tragédias, as empresas falando em sustentabilidade, o mundo cobrando uma postura mais ética e consequente de seus governos em relação aos recursos naturais. Ou seja, meio ambiente é pauta. No entanto, falta uma certa organização nesta cobertura. Ela ainda é muito pontual e sem uma relação direta de causa e efeito. Muitas vezes, os grandes veículos mostram apenas um pedaço tragédia na notícia, sem se dar conta que uma catástrofe tem uma relação de causa e efeito.

IHU On-Line – Qual o perfil de um bom profissional para atuar na área de jornalismo ambiental?

Dal Marcondes – O jornalista ambiental deve ser, antes de tudo, uma pessoa preocupada com o bom jornalismo. Não deve se posicionar como um militante ambiental, pois seu trabalho estaria mais para uma ONG de defesa do meio ambiente do que para informar a sociedade sobre questões relacionadas à multidisciplinaridade da pauta ambiental. Isto é importante porque, muitas vezes, jovens profissionais me procuram indignados porque a mídia não faz seu papel de defender o meio ambiente, e este não é o papel da mídia. Seu principal foco deve ser informar a sociedade com presteza, eficiência e qualidade. Para isto, o jornalista ambiental deve estar preparado para realizar reportagens e investigações que precisam de muito preparo técnico e capacidade de inter-relacionar fatos e dados, de forma a dar ao público as informações necessárias para que a sociedade, as empresas ou o poder público atue.

Portanto, o mais importante para um profissional que queira ser um jornalista ambiental é ser bem formado e bem informado sobre os temas aos quais se propõe a cobrir.

IHU On-Line – Qual é o papel da Envolverde dentro do jornalismo ambiental praticado hoje no Brasil?

Dal Marcondes – A Envolverde é um dos mais antigos espaços de prática do jornalismo ambiental no Brasil. Iniciamos nossa trajetória em 1995, quando fomos procurados pelo Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) para editar no Brasil o Projeto Terramérica, à época um suplemento tablóide para jornais impressos de toda a América Latina. Este projeto existe até hoje, mas nosso grande salto veio com a Internet e com a criação do site www.envolverde.com.br, que entrou no ar em 8 de janeiro de 1998. A partir daí, começamos a ganhar escala de públicos e falar com muito mais gente. Hoje, a Envolverde tem quase 200 mil assinantes que recebem um boletim diário e produz conteúdos para ONGs, empresas e meios de comunicação. Fazemos a Carta Verde, com a revista Carta Capital, produzimos para a Agência Estado e para empresas como Walmart. Também fazemos capacitação de profissionais de comunicação para trabalhar com o tema comunicação ambiental e sustentabilidade através de eventos, seminários e cursos.

IHU On-Line – Como você vê o espaço do Desenvolvimento Sustentável no imaginário social?

Dal Marcondes – As pessoas ainda têm uma relação muito esquizofrênica com o tema sustentabilidade. É só ver o debate que está rolando em relação às mudanças climáticas. Cada lado, a favor ou contra mudar o comportamento de produção e uso de energias, manipula as informações a partir de seu enfoque de interesses. Existe o desejo de viver em um mundo ambientalmente preservado, socialmente responsável e economicamente eficaz. No entanto, pouca gente está disposta a mudar hábitos de consumo, mesmo que isto não signifique alterar sua relação de conforto com o mundo.

(IHU-OnLine)

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Um gás que esfria o clima


Por Risto Isomäki*

Enquanto há pouco progresso para reduzir os gases que provocam o aquecimento global, avança-se rapidamente na proibição de substâncias capazes de esfriar a atmosfera, afirma neste artigo o escritor Risto Isomäki.

Helsinque, Finlândia, 30 de agosto (Terramérica).- Em uma temporada de impressionantes notícias vinculadas ao clima, há sinais de que estão derretendo gelos submarinos que abrigam depósitos de gases-estufa cuja liberação tornaria insignificantes as atuais emissões dessas substâncias causadoras da mudança climática. Neste ano de 2010, são batidos recordes mundiais e nacionais de calor: 37,2 graus na Finlândia, 35 na república russa de Sajá e 54 no Paquistão.

Os incêndios de florestas e jazidas de carvão causam enormes danos na Rússia, enquanto o Paquistão sofreu grandes inundações e enxurradas de lama. Um enorme bloco de gelo se desprendeu da geleira Petermann, no noroeste da Groenlândia, e a extensão do gelo no Mar do Ártico é a segunda menor que se recorde.

Em 1994, foi feita uma estimativa de que havia cerca de 25 mil quilômetros cúbicos de bancos de gelo flutuantes no Ártico. Desde então, a quantidade caiu, pelo menos, em 80%. Enquanto o gelo e a neve refletem entre 70% e 90% da radiação solar para o espaço, as superfícies aquáticas refletem apenas entre 4% e 10%. Portanto, a perda de gelo marinho acelera o aquecimento das águas em áreas polares. O Ártico abriga enormes depósitos naturais de carvão orgânico e metano, potente gás de efeito estufa.

As áreas terrestres com gelo permanente (permafrost) contêm sozinhas um bilhão e meio de toneladas de carvão orgânico que poderia ser liberado na atmosfera em forma de metano se o permafrost derretesse. Quase metade do leito do Ártico está coberta por um permafrost submarino além de existirem ali jazidas de hidratos de metano, uma mistura de gelo comum e gás presa dentro e debaixo do gelo. O derretimento deste permafrost e destes depósitos de hidratos de gás pode, teoricamente, liberar tanto metano e dióxido de carbono que, em comparação, nossas atuais emissões de gases-estufa seriam insignificantes.

Há sinais de que algo assim começa a acontecer. Em agosto de 2009, uma equipe da britânica Universidade de Southampton descobriu 250 locais em que as jazidas submarinas de hidratos de gás tinham começado a derreter e a liberar metano, ao redor do arquipélago ártico de Spitsbergen. É necessário deter esse derretimento antes que as coisas fujam ao controle.

Enquanto há pouco progresso nas negociações para reduzir as emissões que causam o aquecimento global, os esforços para reduzir emissões de substâncias capazes de esfriar a atmosfera avançam rapidamente. A Organização Marítima Internacional (OMI) decidiu, em outubro de 2008, que o máximo de conteúdo de enxofre no combustível usado pelas embarcações que percorrem os oceanos deverá ser de 0,5% até 2020, enquanto o limite no momento é de 2,7%.

As pequenas gotinhas de enxofre emitidas na atmosfera pela combustão dos motores dos navios estimulam a formação de nuvens baixas, que têm um impacto refrescante sobre o planeta, indicam observações científicas. As estimativas disponíveis indicam que as emissões de enxofre das embarcações ajudam a esfriar o planeta com uma eficiência de 58 décimos de watt por metro quadrado. Além disso, esse enxofre faz com que as nuvens sejam mais brancas, reflitam melhor a luz solar e tenham maior vida útil. Seu efeito é especialmente importante sobre os oceanos, onde frequentemente há escassez de pequenas partículas que possam atuar como núcleos de condensação para as nuvens.

Assim, a aplicação dessa disposição da OMI pode reduzir o efeito refrescante dos barcos em 0,31 watt por metro quadrado. Pode parecer pouco importante, mas, segundo medições da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, o desequilíbrio do calor planetário, o aquecimento global, chega hoje a 85 décimos de watt por metro quadrado. Isto significa que a Terra recebe mais energia do Sol do que a irradia de volta ao espaço, e que essa diferença é de 0,85 watt por metro quadrado.

Em outras palavras, a colocação em prática do tratado da OMI pode elevar o aquecimento global em 26%, de 0,85 para 1,16 watt por metro quadrado, um extremo perigoso, sobretudo porque o impacto se concentraria sobre os oceanos, especialmente no Atlântico Norte e no Ártico. O enxofre é prejudicial à saúde humana, por isso tem sentido reduzir as emissões nas zonas marinhas próximas de lugares densamente povoados, como o Báltico e o Mediterrâneo.

Porém, o enxofre emitido no meio do oceano dificilmente pode ser um problema importante para a saúde humana. Este é realmente um bom momento para investir mais de US$ 200 bilhões por ano para reduzir as emissões de enxofre das embarcações que cruzam os oceanos? Embora o tratado da OMI tenha boas intenções, poderia nos empurrar para a beira do abismo.

* Risto Isomäki é ambientalista e escritor finlandês com livros traduzidos para vários idiomas. Direitos exclusivos IPS.

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.

(Envolverde/Terramérica)

"Novo El Niño" torna-se cada vez mais frequente

NASA e NOAA estudam novos fenômenos do El Niño associados às mudanças climáticas.

Tong Lee, do Laboratório de Propulsão a Jato da NASA e Michael MacPhaden, do Laboratório de Estudos Ambientais Marinhos do Pacífico da NOAA, são autores de um estudo que analisa a intensidade dos El Niños desde 1992. Junto com a análise de observações via satélite da temperatura dos oceanos criam um parecer sobre a interrelação dos fenômenos climáticos globais. Os pesquisadores conseguiram perceber que as intensidades do El Niño no oceano Pacífico central dobrou, com seus eventos mais intensos ocorrendo no período de 2009-2010.

Os cientistas explicam que o aumento da força do El Niño ajudam a explicar o aumento da temperatura da superfície do oceano Pacífico, observada ao longo dos anos, e que alguns de seus efeitos são atribuídos ao aquecimento global. "Nosso estudo conclui que a tendência de aumento da temperatura a longo prazo, observada na região central do oceano Pacífico é primordialmente atribuída a El Niños mais intensos e não a um aumento generalizado das temperaturas ambientais”, explica Lee.

Os resultados dessa pesquisa sugerem que as mudanças climáticas já estão interferindo no fenômeno do El Niño por mudarem o centro de ação da região leste para a região central do Pacífico, pois a mudança no padrão de ocorrência do El Niño causa impactos ambientais diferentes dos antes observados. O El Niño faz parte de um padrão de oscilações climáticas associadas aos componentes oceânicos (como temperaturas e correntes marinhas), ocorrendo no oceano pacífico em uma média a cada três ou cinco anos. Esse fenômeno climático possui grande impacto nas dinâmicas oceânicas e na atmosfera, assim como consequências socioeconômicas graves. Sua influência na temperatura global pode induzir maior frequência de tempestades, furações, secas e enchentes.

Os episódios clássicos do conhecido El Niño acontecem normalmente com a diminuição da intensidade dos ventos na região leste do Pacífico, o que acarreta na supressão do movimento natural de circulação das águas marinha, inibindo que águas mais frias subam à superfície, deixando mais quentes as águas superficiais na região das Américas. Nessas situações a água mais quente ocupa a máxima do aquecimento oceânico na região leste equatorial do Pacífico.

Porém, durante a década de 90, cientistas passaram a observar um novo tipo de EL Niño que agora está ocorrendo com maior frequência. Conhecido como “El Niño do Pacífico Central”, esse fenômeno diferencia-se por deslocar o centro de aquecimento das águas da região leste para a região central do Pacífico, e estudos recentes demonstram que esse cenário deve tornar-se mais frequente com o aumento da temperatura global e intensificação das mudanças climáticas.

Ainda são necessárias pesquisas mais aprofundadas sobre os impactos de todos os El Niños observados e sobre as mudanças climáticas que determinam sua força e sua periodicidade. De acordo com Lee, é importante diferenciar as variações naturais das variações induzidas por impactos humanos, como emissões de gases estufas para melhor prever e entender os El Niños e, principalmente o El Niño do Pacífico Central. (Laura Alves/Trajetória da Fumaça)

Outras informações: http://sealevel.jpl.nasa.gov/.

sábado, 28 de agosto de 2010

Camponesas sul africanas sentem a mudança climática


Por Kristin Palitza, da IPS

Cidade do Cabo, África do Sul, 27/8/2010 – A falta de chuvas arruinou a temporada de semeadura e a colheita, reduzindo drasticamente a renda das camponesas sul-africanas Mary-Anne Zimri e Katrina Scheepers. A política que o governo prepara para mitigar as consequências da mudança climática não parece contemplá-las. “Fomos atingidas por todos os lados”, disse Mary-Anne. Ela e Katrina fazem parte de uma cooperativa de Wuppertal, pequena aldeia da província de Cabo Ocidental.

A cooperativa especializa-se no rooibos (Aspalathus linearis), com o qual se prepara chá, e também vende verduras e gado. “Começamos a plantar rooibos em julho, mas este ano foi muito seco”, disse Mary-Anne. Há décadas dependem das chuvas de inverno para irrigar as plantações e agora não conseguem fazer isso, informou. A cooperativa não tem sistema de irrigação. As agricultoras têm de pegar água em baldes do rio que fica a vários quilômetros, o que não basta para manter uma boa produção.

Além do rooibos, a falta de chuva fez com que o alimento dos animais não crescesse como se esperava e as verduras são muito menores do que no ano anterior. “Não acontece só com a gente. A maioria dos camponeses da região perdeu seus cultivos porque está muito seco”, disse Katrina. As incomuns baixas temperaturas de inverno fizeram com que as geadas queimassem a colheita de batata. “Isso nunca tinha acontecido. Não nos últimos 50 anos”, acrescentou.

Os camponeses de Wuppertal atravessam uma situação difícil porque estão a 75 quilômetros da loja de alimentos mais próxima. Sempre dependeram de seus cultivos para terem alimentos. Agora, precisam comprar até para os animais, o que representa gasto adicional. Para a maioria dos membros da cooperativa, que arrendam um terreno da igreja local por uma pequena quantia, a drástica redução das chuvas implica que devem conseguir trabalhos sazonais em fazendas comerciais. Esse tipo de emprego costuma ser mal pago, não é seguro e não traz benefícios.

Mary-Anne e Katrina participaram da mesa-redonda “Mulheres e adaptação à mudança climática: ênfase na segurança alimentar”, organizada pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF) e pela Universidade de Cabo Ocidental, no dia 18. Ali, se informaram sobre estratégias de adaptação à mudança climática e legislação ligada ao fenômeno. “As questões da mudança climática, pobreza, ambiente e gênero estão intrinsecamente vinculadas”, disse Louise Naudé, da WWF África do Sul. “A mudança climática afeta especialmente as mulheres, assim como a falta de alimentos e os desastres naturais. É preciso equilibrar as diferenças de gênero e diminuir a vulnerabilidade delas no setor”, explicou.

Numerosas pesquisas mostram que as mulheres mais pobres costumam sofrer mais os efeitos da mudança climática por terem menos acesso aos recursos. Para elas é mais difícil coletar água e lenha para o fogo. As meninas e as adolescentes costumam ter de largar a escola para ajudar em casa. Onde rege a posse tradicional da terra, as mulheres devem deixar de plantar cultivos de consumo doméstico para dar lugar às espécies comerciais. O governo, por intermédio do Departamento de Assuntos Ambientais, elabora uma política nacional para atender os efeitos da mudança climática, e para isso consultou, em maio, vários especialistas e organizações da sociedade civil.

O conteúdo do rascunho é confidencial, mas, segundo os especialistas consultados que receberam uma cópia, não contém a palavra “mulher” nem “gênero”, embora elas sejam a maioria dos pequenos agricultores e as mais vulneráveis às consequências da mudança climática. “Uma política efetiva deve começar e terminar com a gente, mas o documento ignora isto”, disse Dorah Lebelo, coordenadora da organização Gender CC-Women for Climate Justice. O Departamento de Assuntos Ambientais deve introduzir uma perspectiva de gênero no documento, insistiu. “Pouquíssimos atores sociais foram ouvidos em maio, o que não pode substituir entrevistas com as mulheres diretamente ligadas à situação”, afirmou Dorah.

A especialista também questiona o fato de a consulta ter ocorrido por e-mail. “O departamento assume que todos sabem ler e escrever. Assim, excluiu 24% dos adultos sul-africanos prejudicados pela mudança climática, em especial as mulheres”, destacou. A maioria das pequenas produtoras, que não têm computadores nem Internet, ficou fora do processo. Ao que parece, o governo apoiará soluções de adaptação à mudança climática de grande escala e concentradas no mercado, como energia nuclear e transgênicos. Nada que beneficie as mulheres. “A prioridade parece estar em mudanças tecnológicas, não na vida diária das pessoas”, lamentou.

“É preciso pressionar o governo para que incentive a participação comunitária, especialmente das mulheres, nos processos de decisão, planejamento e governança de assuntos vinculados à mudança climática”, acrescentou Dorah. “Precisamos de soluções centradas nas pessoas em contextos específicos, que sejam participativas e baseadas em conhecimentos locais. Por fim, queremos criar circunstâncias ambientais controladas pelas mulheres para que não fiquem em situação de dependência”, insistiu. Envolverde/IPS

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Para salvar a vida: as mulheres no poder


Leonardo Boff


Há uma feliz singularidade na atual disputa presidencial no Brasil: a presença de duas mulheres, Marina Silva e Dilma Rousseff. Elas são diferentes, cada qual com seu estilo próprio, mas ambas com indiscutível densidade ética e com uma compreensão da política como virtude a serviço do bem comum e não como técnica de conquista e uso do poder, geralmente, em benefício da própria vaidade ou de interesses elitistas que ainda predominam na democracia que herdamos.

Elas emergem num momento especial da história do pais, da humanidade e do planeta Terra. Se pensarmos radicalmente e chegarmos à conclusão como chegaram notáveis cosmólogos e biólogos de que o sujeito principal das ações não somos nós mesmos, num antropocentrismo superficial, mas é a própria Terra, entendida como superorganismo vivo, carregado de propósito, Gaia e Grande Mãe, então diríamos que é a própria Terra que através destas duas mulheres nos está falando, conclamando e advertindo. Elas são a própria Terra que clama, a Terra que sente e que busca um novo equilíbrio.

Esse novo equilíbrio deverá passar pelas mulheres predominantemente e não pelos homens. Estes, depois de séculos de arrogância, estão mais interessados em garantir seus negócios do que salvar a vida e proteger o planeta. Os encontros internacionais mostram-nos despreparados para lidar com temas ligadas à vida e à preservação da Casa Comum. Nesse momento crucial de graves riscos, são invocados aqueles sujeitos históricos que estão, pela própria natureza, melhor apetrechados a assumirem missões e ações ligadas à preservação e ao cuidado da vida. São as mulheres e seus aliados: aqueles homens que tiverem integrado em si as virtudes do feminino. A evolução as fez profundamente ligadas aos processos geradores e cuidadores da vida. Elas são as pastoras da vida e os anjos da guarda dos valores derivados da dimensão da anima (do feminino na mulher e no homem) que são o cuidado, a reverência, a capacidade de captar, nos mínimos sinais, mensagens e sentidos, sensíveis aos valores espirituais como a doação, o amor incondicional, a renúncia em favor do outro e a abertura ao Sagrado.

O feminismo mundial trouxe uma crítica fundamental ao patriarcalismo que nos vem desde o neolítico. O patriarcado originou instituições que ainda moldam as sociedades mundiais como: a razão instrumental-analítica que separa natureza e ser humano e que levou à dominação sobre os processos da natureza de forma tão devastadora que se manifesta hoje pelo aquecimento global; criou o Estado e sua burocracia, mas organizado nos interesses dos homens; projetou um estilo de educação que reproduz e legitima o poder patriarcal; organizou exércitos e inaugurou a guerra. Afetou outras instâncias como as religiões e igrejas cujos deuses ou atores são quase todos masculinos. O “destino manifesto” do patriarcado é do dominium mundi (a dominação do mundo), com a pretensão de fazer-nos “mestres e donos da natureza”(Descartes).

Atualmente, os homens (varões) se fizeram vítimas do “complexo de deus” no dizer de um eminente psicalista alemão K. Richter. Assumiram tarefas divinas: dominar a natureza e os outros, organizar toda a vida, conquistar os espaços exteriores e remodelar a humanidade. Tudo isso foi simplesmente demais. Não deram conta. Sentem-se um “deus de araque” que sucumbe ao próprio peso, especialmente porque projetou uma máquina de morte, capaz de erradicá-lo da face da Terra.

É agora que se faz urgente a atuação salvadora da mulher. Damos razão ao que escreveu anos atrás o Fundo das Nações Unidas para a População:”A raça humana vem saqueando a Terra de forma insustentável e dar às mulheres maior poder de decisão sobre o seu futuro pode salvar o planeta a destruição”. Observe-se: não se diz “maior poder de participação às mulheres”coisa que os homens concedem mas de forma subalterna. Aqui se afirma: “poder de decisão sobre o futuro.” Essa decisão, as mulheres devem assumir, incorporando nela os homens, pois caso contrário, arriscaremos nosso futuro.

Esse é o significado profundo, diria, providencial, das duas candidatas mulheres à presidência do Brasil: Marina Silva e Dilma Rousseff.


Leonardo Boff é teólogo e professor emérito de ética da UERJ.

Novos desafios para o controle das queimadas no Brasil


Fernando Pavia Scardua*
As florestas, o uso e a mudança da terra contribuem com cerca de 1,6 bilhão de toneladas de carbono lançado na atmosfera a cada ano, que significa 17,4% das emissões globais de gases causadores do efeito estufa.

A maioria dessas emissões é causada por desmatamento e degradação florestal. As causas são diversas: políticas setoriais divergentes das políticas ambientais; políticas de desenvolvimento regional descompromissadas com os princípios de desenvolvimento sustentável; a pobreza; mudanças econômicas introduzidas por surtos de exportação; subsídios agrícolas; demanda de produtos agrícolas e pecuários; distorções de mercado como as que são causadas pelas proibições de exportação de madeira; governabilidade precária de terras e florestas, entre outras.

Nos últimos dias temos sido bombardeados por informações em várias mídias do aumento do número de queimadas em vários estados do Brasil e também em outros países (Rússia e Estados Unidos).

O monitoramento e detecção das queimadas e desmatamento utilizados no Brasil são feitos pelo Instituto de Pesquisas Espaciais – INPE. Nos últimos anos dois anos foram detectados alterações no padrão de desmatamento, em particular na Amazônia brasileira.

O desmatamento agora vem ocorrendo em pequenas propriedades e áreas rurais, principalmente na Amazônia Brasileira. Essas propriedades foram alvo nos últimos anos de políticas permissivas de usos da terra, sem um controle mais efetivo por parte do Estado, pondo em cheque as principais diretrizes e metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Mudanças Climáticas – PNMC, o Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia – PPCDAm e pelo Plano Amazônia Sustentável – PAS, que procuram atender as demandas e propostas do próprio governo junto aos fóruns internacionais de mudanças climáticas. Essa mudança enseja um novo olhar ou mudanças dos paradigmas vigentes pelos nossos legisladores e gestores.

A principal meta estabelecida pelo Plano Nacional de Mudanças Climáticas é a redução em 80% o índice de desmatamento anual da Amazônia até 2020, sendo que a redução das taxas de desmatamento deverá ocorrer de forma sustentada, em sua média quinqüenal, em todos os biomas brasileiros, até que se atinja o desmatamento ilegal zero.

Dado o prolongamento da seca em várias regiões do mundo e do Brasil, bem como o acirramento das práticas das queimadas produtores rurais que não dispõem de tecnologia e recursos financeiros para a prática da agricultura, aliado a fatores culturais que utilizam o fogo como forma de preparo do solo, temos que nos perguntar se tais políticas, planos e programas de governo estão efetivamente atingindo suas metas, e mais do que isso, se estão atuando nas causas dos problemas observados.

Muitas das ações e instrumentos utilizados pelos órgãos responsáveis tiveram o mérito de reduzir o desmatamento, que até então estava ligada ao grande capital, porém agora, num primeiro momento, para que essa redução continue teremos que atentar para os pequenos produtores e comunidades locais, sem termos medo de sermos politicamente incorretos. Essa nova abordagem irá requerer de nossos gestores e legisladores coragem e novas posturas, principalmente por se tratar de um público que teve durante muito tempo, e ainda o é, desassistida por várias políticas públicas.

*Fernando Paiva Scardua é pesquisador Associado do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília. Graduado em Engenharia Florestal pela Universidade de Brasília, tem mestrado em Ciências Florestais pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – ESALQ/USP – Piracicaba, doutorado em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília e Pós-Doutorado pelo Institut de Recherche pour le Développement, França. Tem experiência na área ambiental nos seguintes temas: licenciamento ambiental, Políticas Públicas, Descentralização, Gestão Ambiental, Unidades de Conservação, Política Ambiental, Recursos Hídricos, Biodiversidade e Recursos Florestais.

(Agência UnB)

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Pressão de governos estaduais extinguiu 29 áreas protegidas na Amazônia, diz estudo


Por pressão de madeireiros, fazendeiros e dos governos estaduais da Amazônia, 29 áreas protegidas na Amazônia foram reduzidas ou extintas entre 2008 e 2009. O total de florestas perdidas no processo foi de 49 mil km2, quase a área do Rio Grande do Norte.

A informação é do estudo “Ameaças formais contra as Áreas Protegidas na Amazônia”, produzido pelos pesquisadores Paulo Barreto e Elis Araújo, ambos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

O estudo analisou 37 iniciativas formais para reduzir - em tamanho ou grau de proteção - 48 Áreas Protegidas da Amazônia. O relatório indica que, para se reduzir as áreas protegidas, foram utilizados diversos instrumentos legais, como projetos legislativos, ações judiciais, decretos do executivo e até mesmo o zoneamento ecológico econômico (ZEE).

Rondônia foi o Estado que reduziu o maior número de área protegidas. O Estado diminuiu a área de duas unidades de conservação estaduais, e extinguiu dez. Além disso, negociou com o governo federal a redução da Floresta Nacional (Flona) do Bom Futuro: o governo estadual exigiu, como condição para conceder uma licença ambiental para as usinas do rio Madeira, que o governo federal reduzisse a área da Flona.

O relatório destacou reduções no Estado de Mato Grosso, motivadas pela existência de títulos de posse ou propriedade anteriores à criação da UC. Além disso, projetos de infraestrutura como estradas e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) também reduziram parques em Mato Grosso.

O estudo também destaca a redução da área de duas Terras Indígenas (TI), as TI Baú e a TI Apyterewa. “O Ministério da Justiça cedeu às pressões de ocupantes e utilizou portarias para reduzir a TI Baú e a TI Apyterewa, cujos limites legais deveriam ser definidos tão somente por estudo antropológico”.

Para os pesquisadores, a manutenção de unidades de conservação é crucial para proteger a biodiversidade e reduzir o desmatamento na Amazônia. O estudo sugere iniciativas para assegurar a integridade das áreas protegidas. “Recomendamos punir rapidamente os crimes ambientais; consolidar esses espaços promovendo atividades econômicas sustentáveis e sua regularização fundiária; e utilizar o rigor técnico e legal para eventuais alterações”.

Confira o estudo “Ameaças formais contra as Áreas Protegidas na Amazônia”

(Amazonia.org.br)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A "progressão continuada" da miopia dos políticos sobre a educação


Rubens Salles*

No debate entre os candidatos à presidência da república, na rede Bandeirantes, a candidata Dilma Roussef disse que pretende acabar com a progressão continuada no ensino fundamental, e no debate subsequente, entre os candidatos ao governo de São Paulo, os candidatos Aloizio Mercadante e Paulo Skaf prometeram a mesma coisa. Este ponto de vista, vindo de candidatos “desenvolvimentistas”, ligados ainda à era industrial, onde as pessoas eram educadas para serem massa de manobra, não chega a causar espanto. O mais surpreendente foi o fato dos demais candidatos não se terem posicionado contra. Isso levanta a suspeita de que nenhum deles, nem suas assessorias, compreende realmente porque a educação pública no Brasil vai tão mal.

A Progressão Continuada foi criada para substituir uma concepção de avaliação escolar punitiva e excludente, por uma concepção comprometida com o progresso da aprendizagem e o desenvolvimento humano. O sistema antigo, com a possibilidade de reprovação anual, era nefasto para a educação sob vários aspectos.

Em primeiro lugar, durante o ensino fundamental, as crianças estão num período intenso de seu desenvolvimento humano, e, para cada idade, há práticas pedagógicas mais adequadas para estimular o aprendizado em sala de aula. Assim, quando há alunos de várias idades numa mesma classe, prejudica-se esse trabalho, e todos perdem, alunos e professor. Como isso é um fato reconhecido na prática, o que acabava acontecendo em nossas escolas estaduais, é que eram formadas classes só com os alunos mais “difíceis”. Aí, pelo sistema de dotação de classes por pontuação, estes alunos acabavam sobrando para os professores com menor experiência. Aliás, isso ainda ocorre hoje com os alunos retidos em cada ciclo do fundamental.

Chegamos assim ao segundo ponto negativo da retenção anual: a discriminação. O aluno retido sente-se rejeitado, estigmatizado, com sérias consequências para sua auto-estima. E, além de ser excluído do processo de socialização com outras crianças de sua idade, há um forte desestímulo por ele ter de passar de novo pelos mesmos conteúdos, numa escola que, salvo raras exceções, não tem uma prática pedagógica estimulante. O aluno que tiver sucessivas e desestimulantes retenções no percurso escolar vai aumentar as estatísticas da evasão escolar e acaba buscando outros meios de inserção social, através de gangues, drogas e criminalidade. Este processo é totalmente contrário a um dos princípios mais caros aos verdadeiros educadores: A educação precisa proporcionar oportunidades iguais de desenvolvimento humano a todos os indivíduos. Todo cidadão deve ter direito a uma educação básica completa, independente de classe social, religião, gênero e raça, e ninguém deve ser excluído desse direito devido a ser, aparentemente, menos capaz de aprender.

O terceiro ponto negativo, e não menos grave, é que a possibilidade de reprovação incute nos alunos o medo de errar, como se errar fosse a pior coisa que pode acontecer. Este medo vai, com o tempo, matando a criatividade e o protagonismo destas crianças, que chegarão à idade adulta sem a capacidade de ter ideias originais. Nós não sabemos como será o mundo onde nossas crianças vão viver, e quais os desafios que terão de enfrentar, mas tudo indica que a sustentabilidade planetária vai depender da instituição de uma economia muito mais criativa. Assim, a criatividade precisa ser tratada com a mesma importância que a alfabetização.

A progressão continuada não é, portanto, o vilão. O que falta, em primeiro lugar, é a “progressão continuada” do professor. Explico:

Embora a formação em Pedagogia, teoricamente, prepare o professor para lecionar em qualquer ano do ensino infantil ou fundamental de 1º ao 5º ano, ele normalmente se especializa no conteúdo relativo a um único ano escolar, e a cada ano pega uma nova turma de alunos para ensinar o mesmo conteúdo. Seu foco é com o conteúdo, e não com os alunos. Este é um paradigma tão cristalizado, que ninguém ousa imaginar que possa haver outro modelo de relação entre professor e aluno. Desta forma, o professor não se compromete com o desenvolvimento e o sucesso futuro dos alunos. Se a criança tem dificuldades, é cômodo transferir a culpa para a família ou para o professor anterior, e ela será problema do próximo professor. Também é fato que, para se manter com um baixo salário, é comum o professor assumir uma carga horária muito alta, trabalhando em vários períodos, o que inviabiliza um envolvimento mais profundo com seus alunos. Nossas políticas públicas não estimulam o comprometimento do professor com o desenvolvimento individual dos alunos por longo prazo, nem uma aproximação efetiva do professor com as famílias, e, no fim, ninguém é responsabilizado pelo fracasso de um aluno.

Deveríamos então criar um novo nível profissional: o Professor Formador, que poderia ser, inicialmente, um nível optativo. Este professor assumiria seus alunos no 1º ano do ensino fundamental, e os conduziria até o 5º ano, ministrando as matérias básicas do currículo. Outras matérias como educação física, língua estrangeira, artes etc, poderiam ser ministradas por outros professores. Assim, este professor teria condições de conhecer a fundo cada aluno, seu temperamento, suas qualidades e dificuldades, e sua família, para poder atuar da melhor maneira com cada um. Desta forma, o aluno que tiver algum tipo de dificuldade, terá de ser acompanhado de perto pelo professor. Caso este não tenha condições de atendê-lo sozinho, deverá socializar o problema com a equipe escolar, buscar ajuda com a família, ou apoio especializado, se for o caso (psicólogos, fonoaudiólogos, conselho tutelar etc). Ele teria então a responsabilidade de que, no 5º ano, a formação de seus alunos tenha atingido os níveis adequados. Hoje, nenhum professor tem esta responsabilidade, só o aluno. Assumindo perante os pais o compromisso de conduzir seus filhos por uma etapa importante de sua formação, o professor renovaria seu papel social. E, claro, este professor formador precisaria ser bem preparado e ter remuneração adequada para poder dedicar-se a apenas uma turma de alunos.

Este seria o primeiro passo para termos uma educação comprometida com o desenvolvimento humano, focada no indivíduo, e não apenas no ensino de algumas matérias. Afinal de contas, tudo que nossa civilização criou até hoje foi, em última instância, fruto de realizações individuais. Portanto, deve ser uma missão primordial da educação estimular cada criança a desenvolver seus talentos individuais, e só o professor tem a oportunidade de conhecer o aluno como indivíduo. Isso nem o estado ou as editoras conseguem. Já existem escolas em todo o mundo usando este modelo de relação entre professor e aluno, inclusive no Brasil, em escolas comunitárias e até em algumas escolas públicas.

Outros passos necessários incluem a autonomia pedagógica da escola, intensificação do uso das artes como instrumento pedagógico, avaliação integral, reformulação da prática pedagógica e dos currículos para formação dos educadores, entre outros.

Não cabe detalhar todos os aspectos deste modelo de educação no âmbito deste artigo, mas é fundamental que nossos futuros governantes percebam que o mundo mudou, e vai continuar mudando rapidamente. Não basta que os jovens saiam das escolas com prática em passar em provas e vestibulares. Não basta apenas ter conhecimento, pois este está cada vez mais disponível, e sempre pertence ao passado. O futuro depende da sensibilidade, da sociabilidade, da moralidade, da responsabilidade, da solidariedade, do senso estético, e também da vontade de atuar no mundo, com iniciativa, criatividade e coragem, e de outras qualidades intrínsecas ao desenvolvimento humano que as políticas de educação desprezam. E mais, nenhum ser humano deve ser educado para servir a propósitos estatais, ou interesses econômicos. Deve ser educado e desenvolver-se para si mesmo, e de forma que adquira autonomia e capacidade para encontrar propósito e direção para sua vida.

*Rubens Salles é mestre em Educação, Arte e História da Cultura, e pesquisador do Instituto ArteSocial. http://www.institutoartesocial.org.br/ rubens@artesocial.org.br
(Envolverde/O autor)

sábado, 21 de agosto de 2010

Entropia, Vida e o Futuro da Civilização

Homero Santos e Nathalie Zoe marcaram de se encontrar numa confeitaria. Não foi para se deliciarem com a ingestão das quase irresistíveis iguarias calóricas exibidas na vitrine, mas para levar uma conversa informal porém séria sobre temas igualmente sisudos. De todo modo, o cardápio não foi ignorado mas os chás mereceram a preferência.

Recuando um pouco no tempo. A amizade entre Homero e Nathalie era antiga mas ambos se viam apenas esporadicamente em eventos públicos ou em algum grupo de estudos, do qual participavam. Nathalie, uma jovem talentosa e de sólida formação humanista, se dedicara a escrever peças infantis como meio de transmitir às novas gerações elementos que pudessem contribuir para a formação na meninada de uma visão de mundo compatível com os desafios de uma sociedade cada vez mais complexa e cheia de desigualdades e contradições. Poderia dizer-se que Nathalie havia decidido reunir em uma só atividade sua paixão por influir e educar - sua liderança inata - e seu irrefreável pragmatismo, evidente no conteúdo metafórico de suas produções. Mas algo que Nathalie jamais abandonou foi seu gosto pelo questionamento e pelas discussões exploratórias, e talvez disso brotasse o manancial para suas inspirações. É aqui de fato que a história começa.

Homero havia recebido um e-mail de Nathalie sobre inúmeros pontos de vista debatidos no post anterior do Repaginando, fazendo perguntas e delicadamente manifestando algumas discordâncias. No final do e-mail, Nathalie insinuava: “Sinto falta agora de uma conversa em torno de uma necessária nova economia, uma economia que possa ser reinventada, não apenas recuperada”. Disso resultou o lanchinho de fim de tarde, onde os dois estabeleceram um bate-pronto mais com cara de perguntas e respostas do que de diálogo. Eis o que rolou nessa conversação.



Nathalie: O que me inquieta, Homero, é que a lógica do crescimento ilimitado do PIB, assim como da população, é algo insustentável, provocando enormes impactos negativos, criando uma grande corrida mundial sobre energia e outros recursos e não gerando o desenvolvimento. Além do mais, essa lógica se baseia em um consumismo desenfreado, que não satisfaz ninguém e afasta cada vez mais o homem da sua essência. Alguns vêm então falando num “necessário decrescimento da economia”…

Homero: Acho, Nathalie, que minha primeira colocação aumentará mais ainda a sua inquietude! É que considero que o decrescimento tanto como o crescimento podem ser movimentos contrários à continuidade da espécie humana sobre o planeta. Nós, seres humanos, continuando a multiplicar-nos como indivíduos e a consumir, ainda que sem aumentar o padrão atual, não teremos condições de sobrevida. E ninguém quer apenas manter o padrão atual… E o que é pior: o padrão atual de consumo, mesmo o padrão médio do mundo, se demonstra insuficiente para atender boa parte do contingente da população humana. Mas decrescer, em princípio, agravará ainda mais as desigualdades existentes e desatenderá grandes porções da população mundial que apenas sobrevivem numa quase miséria total.

Nathalie: De fato, não podemos falar em decrescimento se considerarmos a expectativa do Banco Mundial de um bilhão de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza em 2015… Decrescimento, por mais criativo que seja, causará exclusão social e desemprego! Desemprego gera pobreza, violência, e degradação ambiental. Será que existe um caminho do meio? O que você acha, Homero?

Homero: Face a esse cenário, nós teríamos que continuar crescendo. Mas continuar crescendo o planeta não suporta, porque o planeta é um sistema cíclico, e os sistemas cíclicos, uma vez esgotados os seus recursos para realimentar o ciclo, estão inexoravelmente destinados a perecer, a não mais poder refazer o que foi desfeito. Perdem a resiliência e isso nos leva a falar em entropia. É a entropia, fenômeno físico universal expresso pela segunda lei da termodinâmica, que está presente na progressiva extinção das estrelas quando transformam todo o seu potencial energético em luz e calor e, ao final, perecem, transformando-se em buracos negros nos seus estertores. Entropia não é só dissipação de energia, é dissipação de matéria também. Todos os sistemas do Universo estão subordinados à lei da entropia.

Vamos admitir, e é verdade, que existe uma entrada de energia solar permanente no planeta: 24 horas por dia, o Sol está injetando na Terra essa energia, ininterruptamente. Esse processo se dá, entretanto, com o aumento continuo da entropia do Sol. Nosso astro-rei está em processo de extinção como as demais estrelas, ainda que na perspectiva de milhões de anos, e compensa o aumento da entropia a que, como lei universal, o planeta Terra está sujeito. Para essa energia solar resgatar, reverter a entropia gerada na Terra, requer-se que haja um processamento que apenas o fenômeno da vida consegue realizar. Toda a comunidade da vida consegue transformar a energia solar, combinada com os ingredientes que a Terra oferece, em matéria organizada e energia concentrada, revertendo a degradação, ou seja, indo na direção oposta à da entropia. É assim que, quando ingerimos um prato de comida, destruímos esse alimento em nosso processo digestivo mas adquirimos energia para transformar aquela comida em ação, em trabalho. Depois os dejetos vão para a Natureza - suponhamos um despejo direto desses dejetos no meio natural - e são reaproveitados graças à existência de micro-organismos que os transformam e que sobrevivem em função da entrada de energia solar neste sistema aberto. A Terra é um sistema aberto, já que ele recebe energia e a dissipa para o espaço, ao passo que o Universo como um todo é um sistema isolado, onde não pode haver teoricamente entrada nem saída de nada, não obstante a existência dos intrigantes buracos negros…

Então crescer sempre, continuadamente, não dá mais, dado o nível de consumo dos recursos do planeta que atingimos, pois destruiríamos em certo momento à frente, e em tempo não tão distante, as condições que sustentam a Teia da Vida, como a denominou Fritjof Capra, e é essa teia que compensa os efeitos degradadores da entropia. Por outro lado, se optarmos por decrescer, a situação precária da qualidade de vida da humanidade - considerando a população mundial no seu todo - será ainda mais agravada. É uma enrascada…e das grandes, Nathalie!

Nathalie: Então, não dá para abraçar o instável descrescimento nem o inviável crescimento, como afirmou o professor Tim Jackson no relatório Prosperity without Growth? Enfim, na sua opinião, como poderemos construir uma nova economia?

Homero: Quando falamos de sustentabilidade, falamos da sustentabilidade do ser humano sobre a crosta terrestre, não estamos falando da sobrevida do planeta em si ou mesmo da continuidade do restante da vida, da continuidade da vida dos seres não-humanos, micro e macro-organismos. Vimos já que decrescimento ou crescimento, os dois caminhos, são adversos ao ser humano. São adversos em função de uma função matemática simples e sintética: I = f (P;A;T), onde I representa o impacto do ser humano sobre a biosfera, que por sua vez seria função de P, que representa População (número de habitantes); de A, que representa Afluência (o mesmo que riqueza, que se desdobrada em suas duas dimensões: produção e consumo); e de T, que representa Tecnologia (meios que utilizamos para produzir e consumir, falando bem genericamente). Aumentando a população, o impacto aumenta. Aumentando a produção e, conseqüentemente o consumo, o impacto aumenta. Conforme o grau de intensividade e difusão do uso das tecnologias, o impacto aumenta. Estes dois aspectos - aumento da produção e consumo, e intensividade do uso de tecnologia - têm a ver com nosso conceito de progresso. E todos queremos o progresso! Nós estamos bastante entalados aí, Nathalie, não há muita saída…

Nathalie: Aí divergimos, Homero. Não me contento com a assunção de que o caminho natural seja a extinção do ser humano, que esse processo faça parte da entropia. Para mim essa afirmação é excessivamente negativa, gera pouca ação, gera conformismo e, como não temos certeza de nada nesta vida, temos que agir, temos que viver no presente, e lutar por todas as formas de vida, pela evolução. É o Princípio da Precaução, é a postura de minimizar arrependimentos futuros, como nos propõe Georgescu.

Homero: O que se pode prever que ocorrerá é que, em determinado momento, se continuarmos a viver da maneira como vivemos atualmente, nos defrontaremos com uma incompatibilidade matemática como reflexo de uma inviabilidade prática. É assim: com a economia mundial crescendo numa média de 3 a 3,5% ao ano, sobre uma base de um PIB atual de 70 trilhões de dólares (o que dá pouco mais de 2 trilhões de dólares por ano, cerca de um Brasil por ano; em 10 anos, serão 10 brasis o que vai dar aproximadamente 40% de crescimento da economia mundial no período), estaremos provocando um impacto brutal, desagregador, sobre um planeta que já tem 40% de sua capacidade de regeneração prejudicada. Em outras palavras, já ultrapassamos em 40% o ponto de equilíbrio entre a biocapacidade que a Terra nos oferece e a pegada ecológica gerada pela ação humana. Ou seja: não vai dar, não vai dar para continuar crescendo.

E decrescer talvez seja muito mais difícil que crescer e sucumbir, talvez decrescer represente uma impossibilidade porque teríamos que mudar toda nossa cultura, que hoje já não é mais apenas ocidental, é uma cultura global, e o desafio é muito maior. China, Índia, os países que andaram meio isolados ou defasados da dita afluência durante séculos, ou milênios até, hoje estão na ponta da atividade econômica. A China, em termos de PIB, vai ser, já neste ano, a segunda maior economia do mundo, ultrapassando o Japão, que também ficou isolado durante milênios, fechado em sua pequena ilha. Nós não temos muita saída. A busca seria uma mudança cultural radical, uma nova concepção do que é o mundo, um novo entendimento; e eu não vejo que o ser humano tenha um grau de altruísmo suficiente para fazer algum tipo de renúncia ao seu conforto em função da continuidade da espécie ou da continuidade de boa parte da vida que ele arrastará consigo para o buraco, caso venhamos a ter uma descontinuidade da presença humana no planeta. Não será o ser humano que vai desaparecer, será todo um segmento que sustenta a vida que vai implodir. A Vida não obstante continuará, Nathalie…

Nathalie: O fato, Homero, é que eu acredito em uma ordem organizadora da vida, uma força maior e desconhecida pela ciência e que contraria a tendência natural da entropia.

Homero: A entropia é uma inexorabilidade no Universo, e por conseqüência no planeta Terra, mas não inviabiliza necessariamente toda forma de vida, num horizonte de tempo medido por métricas humanas. Mas pode inviabilizar esta vida mais sofisticada que é a vida humana, que se foi constituindo com uma dependência extrema - extremada mesmo! - das extensões exossomáticas, como diria Nicholas Georgescu que você citou. Haveria que mudar isso, o que é muito fantasioso e muito distante da maioria das pessoas e mesmo da maioria dos líderes, que querem muito mais apenas mitigar e do que reformar, transformar.

Bem, talvez tenha chegado o momento de começarmos a interiorizar as extensões ou criar mecanismos endossomáticos através de nosso poder da mente e da utilização inteligente das propriedades de nosso próprio sistema bio-psíquico. Só para dar um exemplo do que seria essa interiorização, a telepatia, embora tenha sido sempre considerada marginal pela ciência oficial, foi provada existir e funcionar, como testemunharam Joseph Rhine, na Duke University, e o já extinto serviço secreto russo. Mas nós não nos dedicamos a desenvolver a telepatia como fizemos com as telecomunicações. Tivéssemos ido por esse caminho desenvolvendo essa faculdade e teríamos substituído por ela todo um grande segmento da atividade humana que está vinculado às telecomunicações.

Alguém dirá: mas isso é uma estupidez porque, afinal de contas, como poderíamos ter feito com que isso acontecesse, que suporte nos poderia ter dado a ciência para tal, e mais: se tivesse que acontecer, já teria acontecido…. Não, não! Nós fizemos as escolhas! A grande escolha que fizemos foi criar próteses externas, desenvolver aparatos tecnológicos, e não ativar potencialidades latentes internas. Há inúmeras destas potencialidades internas que hoje nós desprezamos como coisas ligadas à superstição e ao charlatanismo. Mas essa é apenas uma hipótese e talvez seja um caminho. Creio que é muito pouco viável dentro de nossa deificação da ciência oficial que condena essas digressões, mas é um caminho possível, pelo menos deveríamos investigar.

E mais: essa entropia, que levará o Universo todo à extinção, não extinguirá necessariamente a vida, ou a extinguirá numa perspectiva de 3 a 7 bilhões de anos, para arriscar um intervalo numérico. Nosso planeta existe há 3,5 bilhões de anos. A vida na Terra surgiu há 2 bilhões de anos. Quem sabe, portanto, num raciocínio reverso, fossem necessários mais 2 bilhões de anos para extinguir toda a vida e, enquanto houver um laivo de vida, existirá a possibilidade de que seja retomada, ou seja, de que essa faísca preservada gere uma nova evolução, numa perspectiva de milênios e milênios, de centenas de milênios, não importa.

O que poderá vir a acontecer é que, antes disso, venhamos a destruir a possibilidade de manutenção desta onda de vida dentro da qual nós nos encontramos hoje. Mas não será por efeito da entropia natural alinhada a um processo planetário e sim pela aceleração que nós vimos imprimindo ao uso de energia e matéria no complexo produção-consumo que o PIB captura como grandeza mensurável. Nós somos, Nathalie, autores do nosso próprio destino, não tem jeito…

Nathalie: Continuo pensando diferente de você, Homero. Deveríamos considerar essa “força organizadora” que mencionei, essa ordem cósmica, como determinante da origem e manutenção da vida.

Homero: Mas quem disse que existe uma ordem cósmica, como nós entendemos o termo ordem? Vejo que existe uma realidade cósmica, dual, paradoxal na aparência, de ordem e desordem. Ordem e desordem fazem parte do mesmo Universo. Aliás fica a pergunta: há desordem ou se trata de uma ordem que nós ainda não entendemos ou da qual não gostamos? Há aí uma questão complicada que passa por crenças.

A entropia existe, sim, universalmente. Podem existir também os buracos brancos, porque se existem os buracos negros que drenam toda a matéria e energia, toda substância existente para dentro de si, indo isso parar sabe lá onde (imaginemos que isso vá parar em outro universo, paralelo ao nosso…), isso sugere que este Universo não seria um sistema tão isolado como se diz. Pode-se imaginar que cada universo - haveria muitos, tanto quanto (descobrimos recentemente) há incontáveis galáxias como a nossa - tenha um ralo pelo qual se escoam elementos constituintes tragados e haverá adutoras conectadas com outros universos através das quais se injeta aqui, neste Universo, também matéria e energia. Pode ser até que a entropia seja uma lei local deste nosso Universo. E, de qualquer maneira, isso é tão distante no tempo futuro, tão remoto, em termos de bilhões de anos à frente, que as coisas que nos afetam não têm muito a ver com essa entropia cósmica, com essa fatalidade de nos tornarmos absolutamente indiferenciados, ou seja, mortos, inertes, extintos - pelo menos, por essa razão… Mas, considerando a aceleração no uso de recursos que o ser humano alimenta, através do I = f (P;A;T), podemos terminar por realizar essa aniquilação…

Erwin Schrödinger coloca a vida como um dos abrandadores da entropia: todo o fenômeno da vida, porque é um processo orgânico, um processo de organização, regenera energia e matéria dispersas. Preservar a Vida é armar uma cruzada contra a entropia que nos ronda, ameaçadora. Isso então talvez nos dê essa esperança que você tanto busca, Nathalie…



Já era quase noite. Nathalie estava pressurosa por voltar para casa, render a babá e supervisionar o jantar dos dois filhotes, inspiradores domésticos de sua imaginosa produção teatral, e do marido, leitor de primeira hora e crítico de seus textos originais.

Modernamente, Nathalie e Homero racharam a conta e cada qual foi buscar seu carro em estacionamentos diferentes. Homero seguiu pensando em como reagiria Fernanda a esse bate-papo, em como isso se enquadraria na abordagem mais sóbria e estruturada da filosofia. E se anteviu - porque era esse o pressuposto da parceria que constituíram - propondo-lhe um “direito de resposta”. Seria, aliás, uma excelente isca para a produção do próximo post…

Colaborou neste post Tarcila Reis Ursini, Mestre em Desenvolvimento Sustentável pela London University e Sócia-Diretora da consultoria Ekobé.
MercadoÉtico

Rodovia Interoceânica rasga Amazônia com garimpo e desmatamento entre Brasil e Peru




Relato do impacto que a construção da megaestrada está trazendo à região, com desenvolvimento econômico mas problemas ambientais e sociais
Alfonso Daniels

"Rápido! Esconde a câmera, que vão bater na gente!", grita o motoqueiro enquanto cruzamos a selva a toda velocidade. O barulho distante de motores, uma virada brusca do guidão e, de repente, a mata desaparece, substituída por um deserto que se estende até onde a vista alcança, repleto de vilarejos miseráveis com barracas de campanha de lona azul ao lado de poças d'água pestilentas com homens mergulhados até o pescoço.

Em Guacamayo, na província de Madre de Dios, no coração da Amazônia peruana, o negócio milionário da atividade de extração ilegal de ouro ameaça destruir a região. Esta é uma grande consequência oculta do trecho final que permitirá a ligação do oceano Atlântico (porto de Santos) ao Pacífico (portos no Chile e no Peru) por meio de uma rede de rodovias, a maior parte delas já construídas, que também passa pela Bolívia. Com a construção, zonas produtoras de carne e de soja do Brasil terão acesso a portos no oceano Pacífico, de onde poderão embarcar para a China.

A estrada, em seu trecho peruano, terá como pontos finais os portos peruanos de Ilo, Matarani e San Juan de Marcona e deve ser concluída até o fim do ano.

"Isto aqui é o Velho Oeste. Não há lei nem presença do governo", afirma o biólogo peruano Enrique Ortíz, co-fundador da Associação de Preservação da Bacia Amazônica. "A rodovia está facilitando a imigração e barateando suprimentos essenciais, como a gasolina. Se nada for feito, daqui a 100 anos tudo isto se transformará em uma imensa savana, como no norte da Bolívia e em partes do Brasil. Não precisaremos mais ir até a Arábia Saudita para ver dunas".

Cratera

Autoridades estimam que cerca de 300 pessoas chegam à região a cada dia, num lugar quase inacessível até poucos anos atrás. Elas vêm do empobrecido altiplano boliviano em busca de trabalho e de uma vida melhor. A maioria termina no garimpo ilegal, aproveitando que o preço do ouro dobrou nos últimos dois anos, alcançando 1,2 mil dólares a onça (31 gramas), graças à crise econômica mundial.

E quase todos - cerca de 10 mil, embora ninguém saiba o número exato - terminam em Guacamayo, uma espécie de imensa cratera rodeada pela selva que pode ser vista do espaço. Ali, como nos anos 1970 e 80 em Serra Pelada (PA), os garimpeiros destroem a mata no afã de encontrar ouro em meio à areia debaixo das árvores, que depois vai parar em mercados europeus como Londres e Zurique.

Guacamayo, a rigor, tem apenas três anos de idade e fica cerca de 100 quiômetros ao sul da capital de Puerto Maldonado, acessível apenas de moto a partir de imensos acampamentos à beira da estrada, com nomes como Kilómetro 108 ou 112, dependendo do ponto da via. Mas já existem outros lugares similares como Jayave, Delta 1 e Delta 2, que não param de crescer. No total, cerca de 150 mil hectares já foram destruídos - até agora.

Madeira ilegal

Líderes garimpeiros como Amado Romero, presidente da poderosa Federação de Mineradores de Madre de Dios (Fedemin), reconhecem a destruição provocada pelo garimpo ilegal. Isto inclui dezenas de toneladas de mercúrio - até 80, segundo algumas organizações - usadas todo ano para separar o ouro da areia, contaminando os rios da região de tal modo que grande parte do peixe consumido agora vem de fazendas. Mas eles garantem que o garimpo de ouro pode respeitar o meio ambiente e culpam o governo por não intervir para combater o problema.

Seja quem for o culpado, o garimpo ilegal não é o único problema a acompanhar a Interoceânica. Ao norte de Puerto Maldonado, perto da fronteira com o Brasil, a ameaça vem de madeireiros ilegais. O presidente do comitê de gestão florestal do pequeno povoado de Alerta, José Cahuana, é um dos poucos que os enfrentam.

"Minha jurisdição é de 700 mil hectares e os madeireiros estão destruindo metade. Só falta construírem a ponte em Puerto Maldonado, que agora contém o fluxo de madeira, e você verá o que acontece. Será o fim", prevê, sentado na choupana de madeira onde mora e trabalha, num "escritório" formado por uma mesa, uma cadeira e um computador velho.

Tiros e propinas

Cahuana não ganha nenhum salário e se mantém com serviços esporádicos de carpintaria. Há dois anos, salvou a vida ao deixar o escritório antes da chegada do dono de um carregamento de madeira ilegal confiscado que dera oito tiros no vice-governador local. Desde então, parou de patrulhar a mata.

"Não vale a pena arriscar a vida", sentencia.

O governo não ajuda? "Não ajudam nem mesmo a viúva. E a polícia é pior: cobra pelo menos 50 soles (a moeda peruana, em quantia equivalente a 17 dólares) por carro, seja a madeira legal ou ilegal. Se souberem que um caminhão é ilegal, pedem 250 (90 dólares) e, se a espécie for boa, 500 soles. É um escândalo", afirma Cahuana com expressão cansada, enquanto lá fora recomeça a chover.

Capacitação

Ainda assim, a rodovia não leva só notícias ruins à região. Espera-se a chegada de milhares de visitantes, principalmente brasileiros a caminho de Cuzco e Machu Picchu, o que impulsiona vários projetos de ecoturismo e a proteção de algumas áreas. Um exemplo é o restaurante 70 quilômetros ao sul de Puerto Maldonado inaugurado há dois meses por Cirilo Méndez, um agricultor local que chegou a esta zona vindo da costa para cultivar café.

"Há dois ou três anos, eu vendia meus produtos como sempre, em meu quiosque à beira da estrada. De repente, o presidente da Conirsa [empresa construtora da Interoceânica] aparece e me diz: 'Seu Cirilo, amanhã o senhor precisa estar aqui, porque o BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] vai chegar'. No dia seguinte, vários funcionários chegaram, trouxeram o dinheiro e nos capacitaram para administrar isso", conta Méndez, orgulhoso, vestindo um uniforme branco de cozinha e rodeado pela família.

"Chegam turistas brasileiros, peruanos, franceses, todos pela estrada... uns 30, 50 por dia. Temos um passeio de 45 minutos, uma rota turística pela selva. Aqui era tudo floresta quando cheguei, há 25 anos. Só um ou dois caminhões passavam por dia e, no inverno, às vezes ficavam um mês sem passar. Nossa vida agora mudou 100% graças à rodovia".

enviado especial a Puerto Maldonado
Opera Mundi

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Ministério Público repudia mudanças no Código Florestal


Por Verônica Lima, da Rádio Câmara




Procuradores da República e representantes de entidades ligadas ao Ministério PúblicoA Constituição (art. 127) define o Ministério Público como uma instituição permanente, essencial ao funcionamento da Justiça, com a competência de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis. O Ministério Público não faz parte de nenhum dos três Poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário. O MP possui autonomia na estrutura do Estado, não pode ser extinto ou ter as atribuições repassadas a outra instituição. Os membros do Ministério Público Federal são procuradores da República. Os do Ministério Público dos estados e do Distrito Federal são promotores e procuradores de Justiça. Os procuradores e promotores têm a independência funcional assegurada pela Constituição. Assim, estão subordinados a um chefe apenas em termos administrativos, mas cada membro é livre para atuar segundo sua consciência e suas convicções, baseado na lei. Os procuradores e promotores podem tanto defender os cidadãos contra eventuais abusos e omissões do poder público quanto defender o patrimônio público contra ataques de particulares de má-fé. O Ministério Público brasileiro é formado pelo Ministério Público da União (MPU) e pelos ministérios públicos estaduais. O MPU, por sua vez, é composto pelo Ministério Público Federal, pelo Ministério Público do Trabalho, pelo Ministério Público Militar e pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Federal realizaram ato público na Câmara em repúdio às propostas de reforma do Código Florestal (Lei 4.771/65).

Os manifestantes entregaram ao vice-presidente da Câmara, deputado Marco Maia (PT-RS), moção de repúdio e nota técnica com seus argumentos. Eles se disseram muito preocupados com os impactos ambientais que podem provocar as alterações no Código Florestal aprovadas pela comissão especial que analisou o tema. Eles dizem também que o debate não envolveu toda a sociedade e que, na verdade, a legislação atual é moderna, de vanguarda, e não precisa ser mudada, mas colocada em prática.

Para o presidente da Associação Brasileira do Ministério Público de Meio Ambiente, Jarbas Soares Junior, a flexibilização da lei ameaçaria a vegetação, a fauna, a biodiversidade e os recursos hídricos do País. "Somos contra a diminuição das áreas de reserva legalÁrea localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas. O tamanho da reserva varia de acordo com a região e o bioma: - Na Amazônia Legal: 80% em área de florestas, 35% em área de cerrado, 20% em campos gerais; - Nas demais regiões do País: 20% em todos os biomas., a redução das áreas de preservação permanenteSão faixas de terra ocupadas ou não por vegetação nas margens de nascentes, córregos, rios, lagos, represas, no topo de morros, em dunas, encostas, manguezais, restingas e veredas. Essas áreas são protegidas por lei federal, inclusive em áreas urbanas. Calcula-se mais de 20% do território brasileiro estejam em áreas de preservação permanente (APPs). As APPs são previstas pelo Código Florestal. Os casos excepcionais que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em APP são regulamentados pelo Ministério do Meio Ambiente. e a anistia àqueles que desrespeitaram o código", disse.

A Rede Latino-Americana de Ministérios Públicos Ambientais apresentou carta em defesa da legislação em vigor no Brasil. Para o representante do Ministério Público do Paraguai, Jorge Sosa Garcia, o código brasileiro serviu de exemplo para que países como Paraguai, Peru e Equador aprovassem legislações ambientais fortes. Ele disse que, no Paraguai, houve aumento da produção agrícola desde a criação da lei de desmatamento zero, em 2004. Segundo ele, o resultado foi mesmo de redução do desmatamento e estímulo ao desenvolvimento tecnológico.

No Brasil, só a discussão em torno das mudanças no Código Florestal já fez o desmatamento disparar, segundo o presidente do Instituto Direito por um Planeta Verde, Carlos Teodoro Irigaray.

Edição – Wilson Silveira



(Envolverde/Agência Câmara)

O rio Xingu, uma das pérolas do planeta, com Belo Monte, está perdido. Entrevista especial com Oswaldo Sevá


Uma semana em Altamira-PA nessa época do ano pode render dois pontos de vista. Como é o período de seca, que o povo chama de verão, as famílias sobem o rio Xingu procurando as praias que surgem com o rio mais baixo, acampam, comemoram as férias. Se vê uma cidade mais descansada e vazia, quase sem preocupações. Dois outdoors à beira do Xingu anunciam que ali será construída uma das maiores hidrelétricas do mundo, Belo Monte. Se andar pela cidade, também será possível ver pichações contra a obra e, então, pode-se perceber que todo esse clima tropical vai acabar e que há medo de que isso realmente aconteça. A IHU On-Line entrevistou, via Skype, o professor Oswaldo Sevá que, recentemente, passou alguns dias na cidade paraense. “Pela primeira vez, fui para Altamira por minha conta e sem ter ligação com qualquer evento público que estivesse acontecendo lá nessa época. Fui como um cidadão qualquer durante o período de recesso escolar. Aproveitei para conhecer melhor a região”, explica.

Enquanto Sevá conta o que viu, é possível criar a imagem de um monstro destruindo o pouco que o povo da região tem. “Depois de Belo Monte, a água ficará parada e maior parte das praias ficarão abaixo da linha d’água. Claro que podem ser construídas praias artificiais, mas a navegação será diferente, a água tenderá a ficar muito suja na região de Altamira, porque infelizmente a cidade não tem nenhum tipo de tratamento de esgoto, em alguns locais nem o lixo é coletado”, descreveu.

Oswaldo Sevá é graduado em Engenharia Mecânica de Produção pela Universidade de São Paulo. É mestre em Engenharia de Produção pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, e doutor pela Université de Paris I. Organizou três livros: Tenotã-Mõ. Alertas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu (São Paulo: International rivers Network, 2005); Riscos Técnicos coletivos ambientais na região de Campinas, SP (Campinas, SP: NEPAM – Unicamp, 1997); e Risco Ambiental – Roteiro para avaliação das condições de vida e de trabalho em três regiões : ABC/SP, Belo Horizonte e Vale do Aço/MG, Recôncavo Baiano/BA (São Paulo: INSTY – Instituto Nacional de Saúde no Trabalho/CUT, 1992).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor esteve recentemente em Altamira. Que novidades pode nos contar sobre a influência do projeto da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte na região?

Oswaldo Sevá – Pela primeira vez, fui para Altamira por minha conta e sem ter ligação com qualquer evento público que estivesse acontecendo lá nessa época. Fui como um cidadão qualquer durante o período de recesso escolar. Aproveitei para conhecer melhor a região. Passei uma semana lá durante um período que é muito importante para o povo do Pará. Eles chamam essa época de verão porque é quando os rios começam a baixar e quase todo mundo sai em férias e vai para o litoral. É bem parecido com os nossos meses de janeiro e fevereiro, as praias ficam cheiíssimas, os hotéis lotados em regiões turísticas.

Mas Altamira não é uma região turística. O período é de férias também. A cidade estava com um movimento bem abaixo do normal, justamente porque tem muita gente viajando. Do ponto de vista do rio, vemos que ele está mais baixo, começam a aparecer praias, ilhas e pedrais. Em muitos locais do Xingu, o leito não é de barro, como estamos acostumados, é totalmente coberto de lajes de pedras. Nos finais de semana, principalmente em outubro, as pessoas saem da cidade de carro ou motocicleta ou voadeira, que é uma lanchinha com motorzinho, e atravessam o rio, sobem por 15, 20, 30 minutos rio acima onde há quiosques e campings. Famílias inteiras vão acampar, levam as crianças, a barraca, a churrasqueira. Parece que não há qualquer problema na região.

Brinquei com alguns amigos, antes de viajar, que estava indo aproveitar o rio Xingu antes que o destruíssem. De fato, se a obra for feita, toda a paisagem de Altamira mudará, assim como a relação das pessoas com o rio. Depois de Belo Monte, a água ficará parada e maior parte das praias ficarão abaixo da linha d’água. Claro que podem ser construídas praias artificiais, mas a navegação será diferente; a água tenderá a ficar muito suja na região de Altamira, porque infelizmente a cidade não tem nenhum tipo de tratamento de esgoto. Em alguns locais não é nem coletado o lixo. Se a represa for feita, a cidade será muito prejudicada, será uma espécie de Veneza equatorial. Uma parte de Altamira ficará de frente para o rio e a outra para vários arroios com água parada, recebendo toda a carga de esgoto, erosão e assoreamento das estradas e dos desmatamentos.

Contei tudo isso para que os leitores percebam que a transformação de um trecho de rio natural em represas altera definitivamente a história da cidade e das pessoas deste local. E isso representa uma perda muito grande de um potencial turístico, paisagístico, dos recursos pesqueiros e da alimentação do povo. Não que nas represas não existam peixes, mas restringe as espécies, apenas uma ou duas espécies se proliferam, e isso tem fortes consequências econômicas que já são sentidas pelo povo.

Uma das atividades mais importantes que os pobres fazem na beira do rio é capturar um peixinho, do tipo cascudo, porém muito colorido, às vezes é prateado, dourado, listrado. É um peixe ornamental e que era exportado por preços caríssimos para outros países da América do Norte, Japão, Europa. A represa extinguirá essa prática porque esse tipo de peixe vive nos pedrais, em profundidades relativamente pequenas. O ambiente na cidade é muito estranho, você pode passar uma semana lá e não notar que existe uma expectativa muito grande a respeito da possibilidade de algum dia acontecer uma obra gigantesca. Há um outdoor lá da época em que o Lula fez uma visita; há também um outro outdoor dos comerciantes da cidade dizendo que atribuíram a ordem do mérito ao Lula. Porém, não há nada que diga exatamente o que é ou faça referência a Belo Monte.

Em compensação, tive a satisfação de ver pichado nos muros da cidade algumas frases contra a obra, como: “Fora Belo Monte”, “Belo Monstro”. E até uma coisa que me deixou muito emocionado na parede do Hospital Regional de Altamira, que é uma das maiores construções da cidade: uma garotada que é contra a obra escreveu “Belo Monte de mentiras”, que é exatamente o título de um artigo que eu publiquei na internet e foi muito divulgado no ano passado. A gente sente que tem uma circulação imobiliária muito grande, muitas pessoas acham que vão enriquecer com o movimento da cidade. Há muitas construções novas, foi aberto mais um hotel na cidade. Há uma expectativa muito grande por parte da classe dominante local que são latifundiários, políticos ligados a todos os partidos nessas alturas, porque todos os partidos de esquerda, com exceção do PSOL, apóiam a obra e estão apostando que vão ficar ricos, que tudo vai melhorar para o lado deles.

Já a resistência está muito dividida. O governo tem feito muita pressão, assédio. Ouvimos histórias de grupos que, historicamente, eram contrários à obra e hoje em dia estão quietos ou passaram ostensivamente para o outro lado. Até os povos indígenas que vivem mais próximos da cidade estão divididos. Se você quiser ficar uma semana em Altamira e não querer tomar conhecimento do projeto Belo Monte você consegue, mas se quiser ir para lá e sondar direito o que está acontecendo, apurar, investigar, conversar com as pessoas certas para ter uma ideia, você traz uma ótima reportagem.

IHU On-Line – Altamira tem capacidade de receber as pessoas que podem migrar para lá para trabalhar nas barragens?

Oswaldo Sevá – Nenhuma cidade tem capacidade de receber uma obra deste porte. Se forem fazer uma obra do porte de Belo Monte em Porto Alegre, a cidade também não terá capacidade de receber o tanto de gente que precisa para construir uma obra como essa. Historicamente, no Brasil, todas as cidades que foram “cabeça de obra”, ou seja, base de operações de uma obra grande, sofreram muito.

Se você for, atualmente, para Porto Velho e conseguir entrevistar alguém da cidade sobre o que está acontecendo em relação às obras das usinas no Rio Madeira, perceberá que a região se transformou num pandemônio em todos os pontos de vista. Já era uma cidade com uma situação muito ruim, mal estruturada, deficiente em termos de infraestrutura viária, atendimento à saúde, áreas de lazer. É uma cidade com pouca vegetação (uma contradição, porque se localiza bem no meio da Amazônia), virada de frente para um rio enorme (que é o Rio Madeira), mas que poucos usufruem porque a região da orla fluvial é muito suja. Porto Velho está vivendo um momento quase que de faroeste. A obra trouxe problemas sociais enormes por conta da população que tem que ser retirada à força dos locais onde mora. Como a obra de Santo Antonio fica localizada a poucos quilômetros acima da cidade, ela não atinge moradores da área urbana. No entanto, influencia diretamente a vida de várias comunidades e vilarejos. No caso de Altamira, a área urbana seria violentamente atingida. Mesmo que não tivesse esse fluxo muito grande de trabalhadores, a construção forçará a retirada e a mudança de mais de 20 mil pessoas de uma cidade, ou seja, atingirá 20% da cidade. Se caso a obra acontecer, portanto, Altamira vai viver uma situação de calamidade e confusão.

IHU On-Line – Nessa região, hoje, como é o acesso à água e ao saneamento?

Oswaldo Sevá – Altamira sempre foi uma cidade muito mal resolvida, do ponto de vista do saneamento básico. Isso não tem a ver com Altamira em si, tem a ver com o Pará, com o Brasil, com a desigualdade social e econômica que existe e com o fato dos recursos públicos serem sonegados. Além disso, muitas atividades econômicas que há no município de Altamira, na verdade, contribuem muito mais com os cofres estaduais e federais do que para com os cofres municipais. Veja bem, Altamira é um município que tem mais de duzentos quilômetros quadrados, ele é do tamanho do Rio Grande do Sul praticamente. Imagina você administrar um município desse tamanho com uma única sede urbana. Existem localidades em que o prefeito precisa viajar três horas de avião pequeno para chegar. Se for fazer esse mesmo trajeto por terra, na época de chuvas, não vai chegar nunca e na época de seca demora dois dias.

IHU On-Line – Como o senhor vê a decisão dos povos indígenas da região de abandonarem o diálogo com o governo sobre Belo Monte?

Oswaldo Sevá – Deve ser o governo que está dizendo isso. Altamira está cheia de índios morando na cidade, de uma maneira pobre, miserável. Existem duas ou três terras indígenas que estão muito próximas da cidade, a poucas horas de barco. Mas a maioria das terras indígenas fica a dias de distância, nos afluentes do rio Xingu com o rio Ariri ou rio acima no meio do Pará ou até mesmo em Mato Grosso. Alguns desses povos estão batendo pé há mais de 20 anos dizendo que não querem e que são contra Belo Monte.
Em 2008, estive também em Altamira participando de uma reunião dos movimentos organizados contra Belo Monte. Foi convidado, indevidamente, em minha opinião, para esse evento, um representante da Eletrobrás. Ele foi completamente inconveniente, pois provocou muito as pessoas, e um dos representantes do grupo de índios que mora perto de São Félix do Xingu quis dar um castigo no engenheiro e deixou uma cicatriz no braço dele para que nunca mais esquecesse o que aconteceu. Isso não quer dizer que tenham rompido o diálogo. Eles sabem que se Belo Monte for construído, o rio Xingu acabará, porque o governo vai fazer as outras quatro obras que está escondendo.

Os índios sabem, com toda razão, que o Xingu está perdido, embora seja uma das pérolas do planeta, que ainda tem sua bacia bastante preservada apesar do avanço da pecuária e do agronegócio. O governo, desde 1980, está insistindo num projeto inadequado, que nenhum banco se interessou em financiar, porque sabem que é um plano ruim e que não foi criado pelo governo Lula. Este é um projeto que o governo Lula pegou de contrabando, pois é da turma do Fernando Henrique que faz a intermediação com grandes empresas internacionais e grandes empreiteiras. É uma obra muita arriscada em que o governo está colocando dinheiro público, que anunciada a 19 bilhões de reais, vai custar mais de 50 bilhões. Vai ser um dos maiores rombos que o povo brasileiro terá que pagar.

IHU On-Line – O governo afirma que a região da Usina de Belo Monte terá um plano de desenvolvimento sustentável. Isto é possível?

Oswaldo Sevá – Esse plano é uma mentira, uma falcatrua. Na verdade, eles contrataram professores, pesquisadores, especialistas e consultores de Belém para montar um plano regional de desenvolvimento sustentável, mas simplesmente compilaram uma série de rubricas orçamentárias que já existiam nos mais variados ministérios e secretarias do governo do Pará. E transformaram tudo isso em um pacote só, batizando de Plano de Desenvolvimento Sustentável da região de Belo Monte. Isso aí é uma empulhação, não há dinheiro novo nem projetos novos que possam caracterizar esse plano.

O governo do Estado do Pará é um governo que arrecada pouquíssimo e que tem um volume de desvio de verba pública enorme. Ele não dá prioridade nenhuma para a região de Altamira, que não é uma cidade importante dentro do Pará a não ser do ponto de vista das eleições. Se realmente houvesse um plano, nessas condições atuais, não seria de desenvolvimento sustentável. Seria, na verdade, um plano para fazer coisas que já eram para estarem prontas há muito tempo, por exemplo, o asfaltamento da Transamazônica entre cidade de Tucuruí, Novo Repartimento e Altamira. Isto possibilitaria que Altamira fosse ligada, por asfalto, até Belém, ou seja, quase 400 quilômetros.

Para você ter uma ideia: os ônibus que saem de Altamira e que vão para Belém nessa época do verão, que é uma época seca, demoram entre 18 a 24 horas dependendo do dia e do estado da estrada. Na época do inverno, que é quando chove muito, janeiro, fevereiro e março, ele pode não chegar ou demorar três dias. O governo não entende nada de desenvolvimento sustentável, somente conhece o desenvolvimento capitalista avassalador que expropria pessoas e que aguçam as contradições sociais e econômicas.

(Envolverde/IHU On-Line)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Ricos, decadentes e malvados


Antonio Martins*

Diante da crise, governos dos países ricos investem contra os direitos sociais — especialmente na Europa. Baseada em dogmas e nos interesses das elites, tendência pode deprimir a economia internacional. Mas o mundo já não segue o velho Norte.

Em silêncio, porém rapidamente, alguns dos símbolos de civilização e prosperidade que tornavam o “primeiro mundo” orgulhoso e cobiçado estão se desfazendo. Na Europa rica, antigo reduto do “Estado de bem-estar social”, fala-se em adiar a aposentadoria em toda a parte — na Holanda, para depois dos 70 anos… Questiona-se o seguro-desemprego. Eliminam-se serviços de assistência sofisticados (como a renda dos portadores de deficiência e doentes acamados, na Espanha). Coloca-se em xeque conquistas políticas marcantes (como a autonomia regional italiana, ameaçada por cortes dramáticos no orçamento locais). As ilusões de afluência de alguns países dissipam-se: na Irlanda, o PIB despencará 10%, este ano. Os imigrantes retornam (especialmente à América Latina), tornando as sociedades menos diversas. Nos Estados Unidos, dezenas de cidades (entre elas, Philadelphia, Fresno e Colorado Springs) estão desligando parte da iluminação de rua. Por falta de recursos para mantê-las, estradas de asfalto são reduzidas a cascalho. A demissão em massa de professores e a reversão de programas educacionais, obrigam Estados (o caso mais drástico é o Havaí) a reduzir o ano escolar.

Na Europa, embora o desmonte houvesse se esboçado alguns meses antes, seu estopim foi a quebra da Grécia, em maio — e a Alemanha foi o protagonista decisivo. A partir de janeiro, os compradores de títulos públicos gregos passaram a exigir taxas de juros cada vez mais altas para renovar suas aplicações, ou simplesmente migraram para outros papéis. A moeda atacada era o euro, adotado por Atenas desde 2000; devido à pouca importância relativa da economia grega, a sangria poderia ter sido debelada com facilidade, em seu nascedouro, pela União Europeia (UE). Porém, o bloco permaneceu dividido e paralisado. A chanceler alemã, Angela Merkel, comandou o grupo de governantes contrários ao socorro. Argumentou que os gregos viviam acima de suas possibilidades e era preciso forçá-los à disciplina.

A falta de ação alastrou o incêndio. No final de abril, a espiral de juros e a dificuldade de rolar a dívida já atingiam Espanha e Portugal. Especulava-se sobre outros países na fila e temia-se uma crise sistêmica nos circuitos de crédito, semelhante à deflagrada em setembro de 2008, com a quebra do banco de investimentos norte-americano Lehman Brothers. Berlim só flexibilizou sua posição em 10 de maio, após os sobressaltos de uma “sexta-feira negra” nos mercados financeiros. Mas exigiu contrapartidas ultura-draconianas, até então inéditas na Europa.

A Alemanha comandou, política e financeiramente, a formação de um Fundo Europeu de Estabilização. Ele colocará 500 bilhões de euros à disposição dos Tesouros ameaçados pela especulação. No entanto, os países que precisarem recorrer aos recursos estarão obrigados a se submeter, também, ao FMI (que aportará mais € 250 bilhões) e às suas conhecidas condições. O arranjo instaurou um clima de pânico e deflagrou a adoção de “ajustes fiscais” em todo o Velho Mundo (veja, nos boxes, a situação dos principais países atingidos). Como ocorrera em crises anteriores, na América Latina, Sudeste da Ásia e Leste Europeu, as principais medidas foram adotadas sumariamente, sem nenhum debate real entre as sociedades ou mesmo nos Parlamentos. Dominada pelo centro-direita e direita, a maior parte dos governos e legislativos não hesitou em agir contra os serviços públicos e direitos sociais. Mas os social-democratas (no poder na Espanha, Portual e Grécia) tampouco resistiram.

O choque foi agravado porque medidas de austeridade foram adotadas inclusive por países europeus que vivem situação financeira muito confortável. O parlamento francês prepara-se para elevar em dois anos a idade mínima para aposentadoria. A própria Alemanha, que tem superávit comercial superior a € 150 bilhões ao ano e cujo Tesouro capta recursos pagando juros reais em torno de zero, cortou 10 mil postos no serviço público. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, prevaleciam posições de idêntico sentido. Em junho, o Senado recusou-se a prolongar medidas de apoio aos desempregados decretadas em 2008, embora os índices de desocupação sejam os maiores desde 1930. Obama conformou-se e aderiu ao discurso de “austeridade”. No mesmo mês, o G-20 reuniu-se em Toronto e decidiu (mais uma vez sob liderança da emblemática Ângela Merkel) recomendar a redução dos déficits públicos “ao menos pela metade”, até 2013. O norte-americano Paul Krugman, Nobel de Economia (2008), considerou tal decisão “escandalosa, já que a economia mundial está muito longe da recuperação” — e não será possível reativá-la sem ação dos Estados.

II.
Para que um conjunto tão vasto de medidas impopulares seja possível, um dogma tem sido ressuscitado: o da suposta ineficiência dos serviços públicos. Alardeia-se que os Estados estão gastando mais do que arrecadam. Mas se omitem os motivos. O gráfico abaixo, elaborado pela revista The Economist a partir de estatísticas oficiais referentes ao G-7, mostra que o endividamento estatal oscila, em última instância, ao sabor de decisões políticas. Ou seja, seu aumento ou diminuição são comandados pela sociedade, não por lógicas econômicas imutáveis.

De 1950 a 1973, quando prevaleceram políticas de apoio ativo ao desenvolvimento e ao bem-estar social, que exigiam forte investimento público, as dívidas… diminuíram constantemente. Caíram de mais de 110% do PIB (o esforço exigido pela II guerra atolou os Tesouros de débitos) para 30%. Os Estados souberam usar o elenco de mecanismos de que dispõem para reduzi-las. Já entre 1974 e 2008, foram hegemônicas as ideias que pregavam o “Estado mínimo”, a confiança na alegada virtuosidade dos mercados e, portanto, os cortes de gastos. Nessa fase, contraditoriamente, o endividamento público… cresceu sem parar — até chegar a quase 90% do PIB do G-7. Novamente, o fator decisivo foi a ação dos Estados — então, fortemente comprometidos em transferir riqueza aos mais ricos, a pretexto de “estimular os investidores”.

A seção mais impressionante da curva é a que se refere ao período que vai de 2008 a 2012 (inclui previsões). A trajetória da dívida pública entra em ascensão vertical. Bastam quatro anos para que seu percentual passe a 120% do PIB. É natural: trata-se justamente da fase que corresponde à crise financeira global. Nela, os Estados dispenderam rios de dinheiro para evitar que se repetisse uma depressão dramática como a dos anos 1930. Uma das ações mais onerosas foi o resgate das instituições financeiras que estavam à beira do abismo devido à sua própria irresponsabilidade — e que ameaçavam levar consigo o conjunto das economias.

III.
Mas há algo além de ideologia, por trás da ofensiva contra os direitos sociais e serviços públicos. Ela é uma revanche das elites; uma tentativa de deixar para trás as sérias derrotas econômicas e políticas sofridas nos dois primeiros anos de crise. Do ponto de vista financeiro, a manobra é clara. Nos anos anteriores ao grande terremoto financeiro de 2008, grandes bancos internacionais fizeram aplicações de cerca de 2,5 trilhões de euros na Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha. As garantias oferecidas pela União Europeia e FMI protegem estes recursos contra um eventual calote. Em 5 de agosto a revista britânica The Economist informava que os balanços trimestrais de algumas das maiores instituições financeiras europeias (como o HSBC inglês e o BNP francês) voltavam a registrar lucros expressivos. A causa principal, reconhecia o semanário, é a redução expressiva (40%, no caso do HSBC) das perdas provocadas por empréstimos de risco — em grande medida assumidos pelos Estados.

Além disso, destaca o filipino Walden Bello, da ONG asiática Focus on the Global South, o requentamento do discurso que alardeia a “ineficiência” dos Estados ajuda a remendar a imagem do mundo financeiro, seus grandes executivos e políticos que o apoiam. No auge da crise, a opinião pública revoltou-se contra estes personagens, ao tomar conhecimento de suas práticas de cassino, fraudes costumeiras e salários nababescos. Fenômenos políticos de enorme repercussão, como a eleição de Barack Obama nos EUA, foram possíveis em grande medida graças a esta repulsa. Nos últimos meses, porém, ela tem sido mitigada pelo surgimento de um novo vilão — o governante supostamente perdulário, que a mídia ajuda a demonizar.

A revanche das elites assusta por seu grau de hipocrisia e egoísmo, considera Paul Krugman. Ele ressalta que, em nome do combate ao déficit público, uma maioria de parlamentares norte-americanos, dos dois grandes partidos, está disposta a aprovar qualquer corte de despesas — inclusive as que atingem os serviços de infra-estrutura, os mais pobres e os desempregados. O plano de auxílio-desemprego suplementar, recentemente rejeitado pelo Legislativo, foi considerado “inviável” por custar 77 bilhões de dólares. Mas os mesmos congressistas que o derrubaram rejeitam terminantemente rever as isenções fiscais em favor adotadas durante o governo Bush — embora elas beneficiem apenas os 1% mais ricos da população custem 1,3 trilhão de dólares ao Tesouro. Para Krugman, o que está em curso agora é uma tentativa de consolidar e ampliar o processo de concentração de renda vivido entre 1973 e 2010. No período, “a renda de 90% das famílias norte-americanas cresceu apenas 10%, em termos reais, enquanto o 1% dos mais ricos triplicou de renda” e “a diferença entre os salários dos executivos-chefes das grandes corporações e o rendimento mediano dos trabalhadores passou de 26 para 300 vezes”.

IV.
A que futuro a Europa — e, de forma mais ampla, o antigo “primeiro mundo” — estão sujeitos, se prosperar a revanche das elites? Do ponto de vista social, é fácil enxergar. Além de reduzirem o déficit do Estado concentrando riqueza, os “ajustes fiscais” têm, do ponto de vista da economia internacional, o objetivo de aumentar a competitividade dos países que os promovem. O pensamento ortodoxo prega que, ao se tornarem mais “baratos” para as empresas (salários mais baixos, impostos sobre o capital reduzidos), os países atraem investimentos, produzem e exportam mais. Mas se a mesma receita é seguida por muitas economias simultaneamente, a redução de custos de cada um é neutralizada pelas dos demais. Produz-se o que o economista Randal Wray, da Universidade de Missouri, chamou de uma “corrida para o abismo”, na qual “vence quem for o maior perdedor”. Na Europa, tem frisado Krugman, esta disputa bizarra é agravada pelo ajuste fiscal da Alemanha. País de maior produtividade e enorme saldo comercial frente a seus vizinhos, ela precisaria, em favor da coesão e equilíbrios europeus, elevar seu consumo. Ao reduzi-lo, “vai prejudicar a recuperação da zona do euro, que terá mais dificuldades para exportar”.

Mas Krugman empenha-se em debater as medidas recentes também do ponto de vista da teoria econômica. Cada vez mais pessimista, ele diz temer, em seus artigos para o New York Times, que o egoísmo das elites seja destrutivo a ponto de provocar algo semelhante à Longa Depressão iniciada em 1873 — ou, ao menos, uma estagnação duradoura.

Num cenário de crise global ainda não superada, diz ele, os governos deveriam ter coragem de afirmar que o Estado precisa “ampliar enormemente o gasto público, e produzir déficits orçamentários maiores, para provocar uma recuperação robusta”. Quando ela se realizar, será fácil reduzir a divida. Mas se ela não se produzir, o setor público e a sociedade permanecerão no pântano — e as redução estatística da despesa pública consolará apenas os tolos.

V.
A investida elitista encontra resistências. Conforme mostram os boxes de nossa matéria, na maior parte dos países europeus que iniciaram processos de “ajuste fiscal”, houve protestos e paralisações. Na Grécia, eles se transformaram em autêntica revolta popular. Na Itália, manifestações coordenadas em diversas cidades reuniram 1 milhão de pessoas. Em Portugal, a mobilização repercutiu no parlamento e ajudou a constituir uma frente de oposição às medidas que reúne, além dos três partidos mais à esquerda, dissidentes de centro e centro-direita. Entre os trabalhadores, o setor que mais se mobilizou foi o funcionalismo público — o mais imediatamente atingido pelos cortes de serviços, reduções de salários e ataque aos direitos previdenciários.

Mas estas ações não foram suficientes, até o momento, para evitar retrocessos. Há uma razão objetiva para tanto, já vivida no Brasil. Os “ajustes fiscais” decretados em sequência a crises financeiras assemelham-se à versão política das guerras-relâmpagos. Os pacotes de medidas são apresentados e votados em poucos dias e sob ameaças. Os governantes afirmam que a rejeição das propostas dissolverá o país — e são apoiados pela mídia.

Além disso, é possível que as debilidades das lutas revelem insuficiências mais estratégicas da esquerda. Em quase todos os casos, os protestos enfatizam a resistência, o não. Diante de uma crise, como em face de um incêndio, não basta apontar os que foram negligentes, ou denunciar os que ganharão com a tragédia. É preciso propor uma saída, um sim. E falta visivelmente, aos movimentos que saem às ruas ou paralisam o trabalho, uma alternativa.

VI.
Embora ainda não tenham ganhado as passeatas, alternativas inovadoras estão despontando de alguns pensadores e centros de pesquisa ligados aos movimentos sociais. Sediado em Washington, o Center for Economic and Political Research tem produzido estudos de caso importantes, em geral ligados a países europeus. Um deles, recente, é assinado por Mike Weisbrot. Intitulado “Alternativas à austeridade fiscal na Espanha”, dedica-se à análise dos planos adotados no primeiro semestre pelo governo Zapatero. Considera os cortes de despesas públicas “desastrosos, além de desnecessários. Frisa que ajudarão a elevar o desemprego de 8,5% para 20% da população economicamente ativa.

Mas não param na denúncia: oferecem uma alternativa. Sugerem que o Banco Central Europeu aja como o Fed norte-americano e compre títulos da dívida da Espanha até um limite de 4% do PIB. Na Europa, isso teria um efeito político maior: mostraria que sim, há liberdade; não, as sociedades não precisam se conformar com o corte de direitos.

Num outro artigo, publicado pelo Le Monde Diplomatique francês, James Kenneth Galbraith vai além. Não pensa num caso específico, mas na Europa como um todo. Mas ao invés de reduzir direitos em toda parte, como se faz agora, quer nivelá-los por cima. Não basta, crê Galbraith, recompor o Estado de bem-estar social do pós-guerra. Para enfrentar a ofensiva das elites, é preciso ir além das fronteiras nacionais, construindo “um regime fiscal integrado, um banco central dedicado à prosperidade econômica e um setor financeiro que não cause danos”.

Filho do lendário John Galbraith, James quer chegar a tanto pela trilha de uma igualdade ainda não imaginada sequer pela esquerda. Sugere unificar os regimes de aposentadoria (a partir dos mais completos, “a fim de que os trabalhadores de Portugal, Grécia ou Espanha beneficiem-se das normas em vigor nos países mais avançados”), “um salário mínimo decente parta todos os assalariados da União, e um Banco Europeu de Investimentos para financiar a criação de universidades transnacionais e garantir ensino de qualidade de norte a sul”.

Os custos seriam suportáveis? Galbraith responde que sim, desde que haja, adaptada à época que vivemos, vontade política equivalente à que permitiu o surgimento do Estado de bem-estar social. “Certamente, as reformas implicariam impostos mais pesados. Mas eles afetariam mais os ricos nos países pobres que os pobres nos países ricos”.

VII.
Do ponto de vista das lutas sociais, a Europa é hoje um continente difícil. Uma ampla parcela da população, envelhecida, vê as conquistas sociais mais como privilégios que como direitos. A integração com os imigrantes é problemática — muito mais que nos próprios Estados Unidos. A formulação de propostas como a de Galbraith é um enorme alento, mas seria ilusório esperar que elas se concretizem no curto prazo.

Talvez um outro aspecto mereça, por ora, ser mais celebrado. Depois de cinco séculos, o Velho Continente — e, por extensão, o antigo “primeiro mundo” — perderam grande parte da capacidade exportar suas políticas para todo o planeta. Esta tendência perdurou até um passado muito recente. Ainda na década de 1980, o chamado “consenso de Washington” espalhou-se como rastro de pólvora — especialmente na América Latina –, pouco depois de formulado e proposto.

Agora, o mundo vive uma espécie de insubordinação silenciosa das periferias. Embora sem conflito, seguem-se na Ásia, na América do Sul e mesmo em certos países da África, outras políticas. Ainda que discreta, há certa distribuição de riquezas. No plano internacional, não se aceita mais a suposta superioridade do “Ocidente” branco. Sua supremacia é cada vez mais questionada — concreta e simbolicamente — inclusive no terreno decisivo das finanças.

Em curioso sinal dos tempos, os chineses avançaram, no início de agosto, num território antes vedado: o das agências de classificação de risco, que estabelecem “conceitos” para o crédito dos países. No dia 3, o diário londrino Financial Times ouviu Guan Zhianzong, responsável pela recém criada Dagong Global Credit Rate. Sem meias palavras, o entrevistado afirmou: “As agências de ranqueamento ocidentais são politizadas e altamente ideológicas. Não seguem padrões objetivos”.

A alfinetada tinha respaldo oficial e endereço certo. Horas depois, a agência de notícias Xinhua, de Beijing, publicava um comentário entusiasmado, saudando “o passo importante de quebrar o monopólio ocidental de agências de risco, das quais a China foi vítima por longo período”. Na matéria do Financial Times, o próprio Zhianzong frisou que, segundo os critérios de sua companhia, os Estados Unidos — um dos centros da revanche das elites — “estão insolventes e arriscam-se à bancarrota, na condição de nação puramente devedora”…

(Crise e Oportnidade/Mercado Ético)