terça-feira, 17 de novembro de 2009

Um passo importante, artigo de Sérgio Abranches

"É meio estranho um país prometer reduzir suas emissões futuras sem dar a conhecer suas emissões presentes"

Sérgio Abranches é cientista político. Artigo publicado em "O Globo":
O governo brasileiro, ao admitir levar a Copenhague compromissos com ações, quantificadas, rompe com uma atitude histórica da diplomacia que sempre se negou a assumir qualquer compromisso numérico. É um passo importante. O compromisso anunciado ontem pelos ministros Dilma Roussef e Carlos Minc não se refere a emissões já realizadas, como as metas assumidas pela União Europeia, pelo Japão e que devem ser também adotadas pelo EUA.

O que se promete é um esforço voluntário de redução entre 36% e 39% das emissões projetadas para 2020, em um cenário "Business as Usual". Os técnicos fizeram uma projeção de quais seriam as emissões brasileiras em 2020, se não houvesse uma política de redução de emissões. O compromisso é agir para que essa projeção seja reduzida entre 36% e 39%. Não se utiliza um ano base com emissões reais medidas, em relação ao qual se define um corte. Estima-se uma trajetória e a meta é um desvio para menos em relação a essa tendência.

A maior parte da redução dessa tendência, virá da queda do desmatamento, segundo o governo: algo entre 21% e 25%. O restante virá dos demais setores, em particular de mudanças na produção agrícola, com medidas como o aumento do plantio direto, que reduz as emissões derivadas de material orgânico em decomposição com a aragem da terra.

A redução das expectativas de emissão pode significar uma queda real em percentuais inferiores. É diferente da lei de mudança climática de São Paulo, que tem como meta a redução de 20% das emissões de 2005 até 2020. Há vários requisitos para que o compromisso brasileiro ganhe credibilidade.

O primeiro é que o governo divulgue com transparência os números em que se baseou, as hipóteses para as projeções, os coeficientes usados para estimar a contribuição de cada setor, para que possam ser verificados e criticados por especialistas da academia, do setor privado e pela imprensa. Dependendo da metodologia, das hipóteses e dos números de base, a contribuição que viria da agricultura, indústria e transportes pode ser modesta.

A dúvida maior tem a ver com o fato de que o Ministério da Ciência e Tecnologia tem se recusado sistematicamente a atualizar o inventário das emissões brasileiras, que é de 1994. Como avaliar projeções de emissões, se não há dados oficiais sobre as emissões brasileiras? O ministro Minc divulgou recentemente estimativas para 2007, que funcionários graduados do MCT afirmaram não ter credibilidade.

É meio estranho um país prometer reduzir suas emissões futuras sem dar a conhecer suas emissões presentes.

Por que é preciso cuidado com a base dos dados? Porque entre 1994 e 2008, a estrutura industrial, de transportes e de produção de commodities passou por mudanças enormes.

A estabilização, a abertura comercial e a privatização provocaram uma primeira onda de transformações estruturais. Com a recuperação posterior à crise cambial de 99 e o boom do período Lula, houve um novo ciclo de mudanças estruturais e de expansão. A produção de automóveis mais que dobrou nesses 14 anos. A produção de commodities explodiu com a expansão do comércio internacional, com repercussões, inclusive, nos índices de desmatamento.

As transformações introduzidas na matriz elétrica pelo governo Lula, com aumento significativo da geração de eletricidade com combustíveis fósseis, mudou a intensidade de carbono da matriz elétrica. A queda do desmatamento entre 2005 e 2009 reduziu sua participação nas emissões totais. O Brasil de 2004-2008 é muito maior, mais complexo e de muito maior intensidade de carbono no PIB, que o Brasil de 1994. Há ainda pouco detalhamento de como esse objetivo será alcançado na prática e como as ações necessárias serão financiadas.

Essas questões terão que ser respondidas com transparência e os números submetidos à verificação independente. Politicamente, ao apresentar, um número, mesmo com todas as ressalvas, o Brasil terá quebrado um tabu e, na diplomacia, atravessado um marco definitivo.

É parecido com a situação do EUA e da China, que também vinham se negando a assumir compromissos quantificados. Se os três apresentarem números, ainda que discutíveis e insuficientes, Copenhague terá uma evolução mais promissora rumo a um acordo consistente.

Os três terão atravessado a fronteira sem retorno entre a política da negação e a política do comprometimento. Uma vez ultrapassado esse marco, é uma questão de aprofundamento e melhoramento do compromisso.
(O Globo/JCiência)

Um comentário:

  1. Estranho é pouco, é má fé mesmo!É o famoso jeitinho brasileiro de fazer manobras desavergonhadas!

    ResponderExcluir