sábado, 21 de agosto de 2010

Entropia, Vida e o Futuro da Civilização

Homero Santos e Nathalie Zoe marcaram de se encontrar numa confeitaria. Não foi para se deliciarem com a ingestão das quase irresistíveis iguarias calóricas exibidas na vitrine, mas para levar uma conversa informal porém séria sobre temas igualmente sisudos. De todo modo, o cardápio não foi ignorado mas os chás mereceram a preferência.

Recuando um pouco no tempo. A amizade entre Homero e Nathalie era antiga mas ambos se viam apenas esporadicamente em eventos públicos ou em algum grupo de estudos, do qual participavam. Nathalie, uma jovem talentosa e de sólida formação humanista, se dedicara a escrever peças infantis como meio de transmitir às novas gerações elementos que pudessem contribuir para a formação na meninada de uma visão de mundo compatível com os desafios de uma sociedade cada vez mais complexa e cheia de desigualdades e contradições. Poderia dizer-se que Nathalie havia decidido reunir em uma só atividade sua paixão por influir e educar - sua liderança inata - e seu irrefreável pragmatismo, evidente no conteúdo metafórico de suas produções. Mas algo que Nathalie jamais abandonou foi seu gosto pelo questionamento e pelas discussões exploratórias, e talvez disso brotasse o manancial para suas inspirações. É aqui de fato que a história começa.

Homero havia recebido um e-mail de Nathalie sobre inúmeros pontos de vista debatidos no post anterior do Repaginando, fazendo perguntas e delicadamente manifestando algumas discordâncias. No final do e-mail, Nathalie insinuava: “Sinto falta agora de uma conversa em torno de uma necessária nova economia, uma economia que possa ser reinventada, não apenas recuperada”. Disso resultou o lanchinho de fim de tarde, onde os dois estabeleceram um bate-pronto mais com cara de perguntas e respostas do que de diálogo. Eis o que rolou nessa conversação.



Nathalie: O que me inquieta, Homero, é que a lógica do crescimento ilimitado do PIB, assim como da população, é algo insustentável, provocando enormes impactos negativos, criando uma grande corrida mundial sobre energia e outros recursos e não gerando o desenvolvimento. Além do mais, essa lógica se baseia em um consumismo desenfreado, que não satisfaz ninguém e afasta cada vez mais o homem da sua essência. Alguns vêm então falando num “necessário decrescimento da economia”…

Homero: Acho, Nathalie, que minha primeira colocação aumentará mais ainda a sua inquietude! É que considero que o decrescimento tanto como o crescimento podem ser movimentos contrários à continuidade da espécie humana sobre o planeta. Nós, seres humanos, continuando a multiplicar-nos como indivíduos e a consumir, ainda que sem aumentar o padrão atual, não teremos condições de sobrevida. E ninguém quer apenas manter o padrão atual… E o que é pior: o padrão atual de consumo, mesmo o padrão médio do mundo, se demonstra insuficiente para atender boa parte do contingente da população humana. Mas decrescer, em princípio, agravará ainda mais as desigualdades existentes e desatenderá grandes porções da população mundial que apenas sobrevivem numa quase miséria total.

Nathalie: De fato, não podemos falar em decrescimento se considerarmos a expectativa do Banco Mundial de um bilhão de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza em 2015… Decrescimento, por mais criativo que seja, causará exclusão social e desemprego! Desemprego gera pobreza, violência, e degradação ambiental. Será que existe um caminho do meio? O que você acha, Homero?

Homero: Face a esse cenário, nós teríamos que continuar crescendo. Mas continuar crescendo o planeta não suporta, porque o planeta é um sistema cíclico, e os sistemas cíclicos, uma vez esgotados os seus recursos para realimentar o ciclo, estão inexoravelmente destinados a perecer, a não mais poder refazer o que foi desfeito. Perdem a resiliência e isso nos leva a falar em entropia. É a entropia, fenômeno físico universal expresso pela segunda lei da termodinâmica, que está presente na progressiva extinção das estrelas quando transformam todo o seu potencial energético em luz e calor e, ao final, perecem, transformando-se em buracos negros nos seus estertores. Entropia não é só dissipação de energia, é dissipação de matéria também. Todos os sistemas do Universo estão subordinados à lei da entropia.

Vamos admitir, e é verdade, que existe uma entrada de energia solar permanente no planeta: 24 horas por dia, o Sol está injetando na Terra essa energia, ininterruptamente. Esse processo se dá, entretanto, com o aumento continuo da entropia do Sol. Nosso astro-rei está em processo de extinção como as demais estrelas, ainda que na perspectiva de milhões de anos, e compensa o aumento da entropia a que, como lei universal, o planeta Terra está sujeito. Para essa energia solar resgatar, reverter a entropia gerada na Terra, requer-se que haja um processamento que apenas o fenômeno da vida consegue realizar. Toda a comunidade da vida consegue transformar a energia solar, combinada com os ingredientes que a Terra oferece, em matéria organizada e energia concentrada, revertendo a degradação, ou seja, indo na direção oposta à da entropia. É assim que, quando ingerimos um prato de comida, destruímos esse alimento em nosso processo digestivo mas adquirimos energia para transformar aquela comida em ação, em trabalho. Depois os dejetos vão para a Natureza - suponhamos um despejo direto desses dejetos no meio natural - e são reaproveitados graças à existência de micro-organismos que os transformam e que sobrevivem em função da entrada de energia solar neste sistema aberto. A Terra é um sistema aberto, já que ele recebe energia e a dissipa para o espaço, ao passo que o Universo como um todo é um sistema isolado, onde não pode haver teoricamente entrada nem saída de nada, não obstante a existência dos intrigantes buracos negros…

Então crescer sempre, continuadamente, não dá mais, dado o nível de consumo dos recursos do planeta que atingimos, pois destruiríamos em certo momento à frente, e em tempo não tão distante, as condições que sustentam a Teia da Vida, como a denominou Fritjof Capra, e é essa teia que compensa os efeitos degradadores da entropia. Por outro lado, se optarmos por decrescer, a situação precária da qualidade de vida da humanidade - considerando a população mundial no seu todo - será ainda mais agravada. É uma enrascada…e das grandes, Nathalie!

Nathalie: Então, não dá para abraçar o instável descrescimento nem o inviável crescimento, como afirmou o professor Tim Jackson no relatório Prosperity without Growth? Enfim, na sua opinião, como poderemos construir uma nova economia?

Homero: Quando falamos de sustentabilidade, falamos da sustentabilidade do ser humano sobre a crosta terrestre, não estamos falando da sobrevida do planeta em si ou mesmo da continuidade do restante da vida, da continuidade da vida dos seres não-humanos, micro e macro-organismos. Vimos já que decrescimento ou crescimento, os dois caminhos, são adversos ao ser humano. São adversos em função de uma função matemática simples e sintética: I = f (P;A;T), onde I representa o impacto do ser humano sobre a biosfera, que por sua vez seria função de P, que representa População (número de habitantes); de A, que representa Afluência (o mesmo que riqueza, que se desdobrada em suas duas dimensões: produção e consumo); e de T, que representa Tecnologia (meios que utilizamos para produzir e consumir, falando bem genericamente). Aumentando a população, o impacto aumenta. Aumentando a produção e, conseqüentemente o consumo, o impacto aumenta. Conforme o grau de intensividade e difusão do uso das tecnologias, o impacto aumenta. Estes dois aspectos - aumento da produção e consumo, e intensividade do uso de tecnologia - têm a ver com nosso conceito de progresso. E todos queremos o progresso! Nós estamos bastante entalados aí, Nathalie, não há muita saída…

Nathalie: Aí divergimos, Homero. Não me contento com a assunção de que o caminho natural seja a extinção do ser humano, que esse processo faça parte da entropia. Para mim essa afirmação é excessivamente negativa, gera pouca ação, gera conformismo e, como não temos certeza de nada nesta vida, temos que agir, temos que viver no presente, e lutar por todas as formas de vida, pela evolução. É o Princípio da Precaução, é a postura de minimizar arrependimentos futuros, como nos propõe Georgescu.

Homero: O que se pode prever que ocorrerá é que, em determinado momento, se continuarmos a viver da maneira como vivemos atualmente, nos defrontaremos com uma incompatibilidade matemática como reflexo de uma inviabilidade prática. É assim: com a economia mundial crescendo numa média de 3 a 3,5% ao ano, sobre uma base de um PIB atual de 70 trilhões de dólares (o que dá pouco mais de 2 trilhões de dólares por ano, cerca de um Brasil por ano; em 10 anos, serão 10 brasis o que vai dar aproximadamente 40% de crescimento da economia mundial no período), estaremos provocando um impacto brutal, desagregador, sobre um planeta que já tem 40% de sua capacidade de regeneração prejudicada. Em outras palavras, já ultrapassamos em 40% o ponto de equilíbrio entre a biocapacidade que a Terra nos oferece e a pegada ecológica gerada pela ação humana. Ou seja: não vai dar, não vai dar para continuar crescendo.

E decrescer talvez seja muito mais difícil que crescer e sucumbir, talvez decrescer represente uma impossibilidade porque teríamos que mudar toda nossa cultura, que hoje já não é mais apenas ocidental, é uma cultura global, e o desafio é muito maior. China, Índia, os países que andaram meio isolados ou defasados da dita afluência durante séculos, ou milênios até, hoje estão na ponta da atividade econômica. A China, em termos de PIB, vai ser, já neste ano, a segunda maior economia do mundo, ultrapassando o Japão, que também ficou isolado durante milênios, fechado em sua pequena ilha. Nós não temos muita saída. A busca seria uma mudança cultural radical, uma nova concepção do que é o mundo, um novo entendimento; e eu não vejo que o ser humano tenha um grau de altruísmo suficiente para fazer algum tipo de renúncia ao seu conforto em função da continuidade da espécie ou da continuidade de boa parte da vida que ele arrastará consigo para o buraco, caso venhamos a ter uma descontinuidade da presença humana no planeta. Não será o ser humano que vai desaparecer, será todo um segmento que sustenta a vida que vai implodir. A Vida não obstante continuará, Nathalie…

Nathalie: O fato, Homero, é que eu acredito em uma ordem organizadora da vida, uma força maior e desconhecida pela ciência e que contraria a tendência natural da entropia.

Homero: A entropia é uma inexorabilidade no Universo, e por conseqüência no planeta Terra, mas não inviabiliza necessariamente toda forma de vida, num horizonte de tempo medido por métricas humanas. Mas pode inviabilizar esta vida mais sofisticada que é a vida humana, que se foi constituindo com uma dependência extrema - extremada mesmo! - das extensões exossomáticas, como diria Nicholas Georgescu que você citou. Haveria que mudar isso, o que é muito fantasioso e muito distante da maioria das pessoas e mesmo da maioria dos líderes, que querem muito mais apenas mitigar e do que reformar, transformar.

Bem, talvez tenha chegado o momento de começarmos a interiorizar as extensões ou criar mecanismos endossomáticos através de nosso poder da mente e da utilização inteligente das propriedades de nosso próprio sistema bio-psíquico. Só para dar um exemplo do que seria essa interiorização, a telepatia, embora tenha sido sempre considerada marginal pela ciência oficial, foi provada existir e funcionar, como testemunharam Joseph Rhine, na Duke University, e o já extinto serviço secreto russo. Mas nós não nos dedicamos a desenvolver a telepatia como fizemos com as telecomunicações. Tivéssemos ido por esse caminho desenvolvendo essa faculdade e teríamos substituído por ela todo um grande segmento da atividade humana que está vinculado às telecomunicações.

Alguém dirá: mas isso é uma estupidez porque, afinal de contas, como poderíamos ter feito com que isso acontecesse, que suporte nos poderia ter dado a ciência para tal, e mais: se tivesse que acontecer, já teria acontecido…. Não, não! Nós fizemos as escolhas! A grande escolha que fizemos foi criar próteses externas, desenvolver aparatos tecnológicos, e não ativar potencialidades latentes internas. Há inúmeras destas potencialidades internas que hoje nós desprezamos como coisas ligadas à superstição e ao charlatanismo. Mas essa é apenas uma hipótese e talvez seja um caminho. Creio que é muito pouco viável dentro de nossa deificação da ciência oficial que condena essas digressões, mas é um caminho possível, pelo menos deveríamos investigar.

E mais: essa entropia, que levará o Universo todo à extinção, não extinguirá necessariamente a vida, ou a extinguirá numa perspectiva de 3 a 7 bilhões de anos, para arriscar um intervalo numérico. Nosso planeta existe há 3,5 bilhões de anos. A vida na Terra surgiu há 2 bilhões de anos. Quem sabe, portanto, num raciocínio reverso, fossem necessários mais 2 bilhões de anos para extinguir toda a vida e, enquanto houver um laivo de vida, existirá a possibilidade de que seja retomada, ou seja, de que essa faísca preservada gere uma nova evolução, numa perspectiva de milênios e milênios, de centenas de milênios, não importa.

O que poderá vir a acontecer é que, antes disso, venhamos a destruir a possibilidade de manutenção desta onda de vida dentro da qual nós nos encontramos hoje. Mas não será por efeito da entropia natural alinhada a um processo planetário e sim pela aceleração que nós vimos imprimindo ao uso de energia e matéria no complexo produção-consumo que o PIB captura como grandeza mensurável. Nós somos, Nathalie, autores do nosso próprio destino, não tem jeito…

Nathalie: Continuo pensando diferente de você, Homero. Deveríamos considerar essa “força organizadora” que mencionei, essa ordem cósmica, como determinante da origem e manutenção da vida.

Homero: Mas quem disse que existe uma ordem cósmica, como nós entendemos o termo ordem? Vejo que existe uma realidade cósmica, dual, paradoxal na aparência, de ordem e desordem. Ordem e desordem fazem parte do mesmo Universo. Aliás fica a pergunta: há desordem ou se trata de uma ordem que nós ainda não entendemos ou da qual não gostamos? Há aí uma questão complicada que passa por crenças.

A entropia existe, sim, universalmente. Podem existir também os buracos brancos, porque se existem os buracos negros que drenam toda a matéria e energia, toda substância existente para dentro de si, indo isso parar sabe lá onde (imaginemos que isso vá parar em outro universo, paralelo ao nosso…), isso sugere que este Universo não seria um sistema tão isolado como se diz. Pode-se imaginar que cada universo - haveria muitos, tanto quanto (descobrimos recentemente) há incontáveis galáxias como a nossa - tenha um ralo pelo qual se escoam elementos constituintes tragados e haverá adutoras conectadas com outros universos através das quais se injeta aqui, neste Universo, também matéria e energia. Pode ser até que a entropia seja uma lei local deste nosso Universo. E, de qualquer maneira, isso é tão distante no tempo futuro, tão remoto, em termos de bilhões de anos à frente, que as coisas que nos afetam não têm muito a ver com essa entropia cósmica, com essa fatalidade de nos tornarmos absolutamente indiferenciados, ou seja, mortos, inertes, extintos - pelo menos, por essa razão… Mas, considerando a aceleração no uso de recursos que o ser humano alimenta, através do I = f (P;A;T), podemos terminar por realizar essa aniquilação…

Erwin Schrödinger coloca a vida como um dos abrandadores da entropia: todo o fenômeno da vida, porque é um processo orgânico, um processo de organização, regenera energia e matéria dispersas. Preservar a Vida é armar uma cruzada contra a entropia que nos ronda, ameaçadora. Isso então talvez nos dê essa esperança que você tanto busca, Nathalie…



Já era quase noite. Nathalie estava pressurosa por voltar para casa, render a babá e supervisionar o jantar dos dois filhotes, inspiradores domésticos de sua imaginosa produção teatral, e do marido, leitor de primeira hora e crítico de seus textos originais.

Modernamente, Nathalie e Homero racharam a conta e cada qual foi buscar seu carro em estacionamentos diferentes. Homero seguiu pensando em como reagiria Fernanda a esse bate-papo, em como isso se enquadraria na abordagem mais sóbria e estruturada da filosofia. E se anteviu - porque era esse o pressuposto da parceria que constituíram - propondo-lhe um “direito de resposta”. Seria, aliás, uma excelente isca para a produção do próximo post…

Colaborou neste post Tarcila Reis Ursini, Mestre em Desenvolvimento Sustentável pela London University e Sócia-Diretora da consultoria Ekobé.
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