domingo, 14 de fevereiro de 2010

O guarani continua persona non grata em sua própria terra

Leonardo sakamoto

Os guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul enfrentam a pior situação entre os povos indígenas do Brasil, apresentando altos índices de suicídio e desnutrição infantil. O confinamento em pequenas parcelas de terra é uma das razões principais para a precária situação do povo. Sem alternativas, tornam-se alvos fáceis para os aliciadores de mão-de-obra e muitos acabaram como escravos em usinas de açúcar e álcool no Estado nos últimos anos.

E por que as coisas só pioram? Matéria da jornalista Bianca Pyl, publicada na Repórter Brasil, mostrou que do total de 74 Terras Indígenas homologadas pelo governo federal do início de 2003 até outubro de 2009, apenas três contemplaram o povo guarani, uma das maiores populações indígenas do país. Levantamento da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) revelou que 80% dos territórios guarani localizados nas regiões Sul e Sudeste do país não foram regularizados ou se encontram regularizados com pendências. Ou seja, o guarani continua sendo persona non grata em sua própria terra.

Segundo a reportagem, 50 das 120 terras com presença guarani não estão sequer reconhecidas nas estimativas oficiais e, portanto, não são sequer divulgados pela Fundação Nacional do Índio (Funai). “Parte do não reconhecimento do direito à terra se deve à localização das aldeias guarani em áreas de grande interesse econômico. Com o desenvolvimento predatório das regiões Sul e Sudeste, os guarani perderam a maior parte do território que ocupavam originalmente”, analisa Daniela Perutti, antropóloga da CPI-SP e uma das autoras do estudo.

Como isso se traduz na realidade? Já mostrei exemplos neste blog em outras ocasiões:

Novembro de 2009: Não basta lucrar, tem que ser fácil: o Ministério Público do Trabalho e as Polícias Federal e Civil flagraram três adolescentes indígenas sendo aliciados para o corte de cana na usina Santa Olinda, em Sidrolândia (MS), que pertence à Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool, do Grupo José Pessoa. Uma fiscalização, gerada por denúncia anônima, verificou as aldeias Bororó, Panambizinho e Jaguapiru, em Dourados (MS). Segundo o MPT, o procurador do Trabalho Paulo Douglas de Moraes identificou os adolescentes, que receberiam documentos de pessoas maiores de 18 anos fornecidos por um “gato” (contratador de mão-de-obra) para poderem trabalhar. Um ônibus circulava pelas aldeias recolhendo indígenas para trabalharem na usina – no melhor estilo “restaurante self-service” de mercado de trabalho.

Setembro de 2009: De acordo a Fundação Nacional do Índio e o Ministério Público Federal, um ataque foi desferido contra um grupo de índios que dormia em um acampamento construído no km 10 da rodovia BR-463, ao lado da Fazenda Serrana arrendada para o plantio de cana pela usina São Fernando. O MPF, que visitou o local logo após o ataque, foi informado que cerca de oito pessoas, algumas armadas, teriam participado da ação.

“A movimentação do grupo [de indígenas no dia 17] deve ter atraído a atenção do proprietário da fazenda [Serrana] ou de quem a arrenda para fins de plantio de cana. Os índios narram que já era madrugada, cerca de uma hora da manhã, quando começaram os tiros. No momento da investida, ‘foi uma correria’. Mães agarravam seus filhos pequenos e tentavam fugir. Duas pessoas saíram feridas (…). O barraco construído por eles foi completamente queimado e as paliçadas erguidas para a construção de mais habitações arrancadas e/ou queimadas”, afirma o relatório do MPF.

E quem apóia o “desenvolvimento predatório”? Muita gente famosa. Quem não se lembra do discurso da atriz global e pecuarista Regina Duarte na abertura da 45ª Expoagro, em Dourados (MS) em maio de 2009? Solidária com os produtores e lideranças rurais quanto à questão da demarcação de terras indígenas e quilombolas no Estado, ela não teve papas na língua: “Confesso que em Dourados voltei a sentir medo”.

A Namoradinha do Brasil fazia referência à previsão de criação de novas reservas na região de Dourados. “O direito à propriedade é inalienável”, explicou ela, de forma curta, grossa e maravilhosamente elucidativa. “Podem contar comigo, da mesma forma que estive presentes nos momentos mais importantes da política brasileira.” Ela e o marido são criadores da raça Brahman em Barretos (SP).

Inalienáveis deveriam ser o direito à vida e à dignidade, mas terra vale mais que isso na fronteira agrícola brasileira. Dos 60 assassinatos de indígenas ocorridos no Brasil inteiro em 2008, 42 vítimas (70% do total) eram do povo guarani kaiowá, do Mato Grosso do Sul, de acordo com dados Conselho Indígenista Missionário (Cimi). “Ninguém é condenado quando mata um índio. Na verdade, os condenados até hoje são os indígenas, não os assassinos”, afirmou Anastácio Peralta, liderança do povo guarani kaiowá da região. “Nós estamos amontoados em pequenos acampamentos. A falta de espaço faz com que os conflitos fiquem mais acirrados, tanto por partes dos fazendeiros que querem nos massacrar, quanto entre os próprios indígenas que não tem alternativa de trabalho, de renda, de educação”, lamenta.

Enquanto os índios se amontoam em reservas minúsculas, fazendeiros, muitos dos quais ocupantes irregulares de terras, esparramam-se confortavelmente por centenas de milhares de hectares. O governo não tem sido competente para agilizar a demarcação de terras e vem sofrendo pressões da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA). Mesmo em áreas já homologadas, os fazendeiros-invasores se negam a sair.

Em outros lugares, isso seria chamado genocídio. Aqui é progresso.
Blog do Sakamoto

Um comentário:

  1. Caro Otoniel,

    Agradeço pela informação sobre este pedaço da nossa história que até então eu desconhecia. Força na sua luta pelo reconhecimento de tão triste episódio. Estarei ao seu dispor para outras ações necessárias.
    Um abraço solidário, Liete.

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