segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Da biodiversidade às florestas e pajés



Washington Novaes*

Neste Ano Internacional da Biodiversidade, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) traz boa notícia: o desmatamento e a conversão de áreas florestadas para a agropecuária caíram na década 2000/2009 para 13 milhões de hectares anuais (ou 130 mil km2, pouco mais de metade da superfície do Estado de São Paulo), ante 16 milhões de hectares anuais na década anterior. Mas complementa: ainda assim, o “ritmo de perda de florestas tropicais continua alarmante”.

Brasil e Indonésia, diz o relatório da FAO, são os principais agentes desse desmatamento. E o estrago só não foi maior porque China, Índia, EUA e Vietnã plantaram 7 milhões de km2 anuais de florestas na década. Com isso, a perda líquida caiu de 8,3 milhões de hectares anuais, na década anterior, para 5,2 milhões de hectares anuais, na última. E a superfície florestal mundial ficou em 4 bilhões de hectares (ou 40 milhões de km2), cerca de 31% da superfície terrestre.

Os números do Brasil no relatório são fortes: 2,6 milhões de hectares anuais (ou 26 mil km2) desmatados em todo o País na última década, ante 29 milhões de hectares anuais na década de 90. E isso tem consequências graves, já que os 900 especialistas de 178 países reunidos pela FAO não hesitam em dizer que as florestas “têm um papel muito importante” na mitigação de mudanças climáticas, pois armazenam 289 bilhões de toneladas de carbono, mais do que já está acumulado na atmosfera e intensifica o efeito estufa. Sem a floresta, o carbono liberado irá para a atmosfera. E as florestas primárias atualmente representam 36% da superfície florestal total. Delas, 1% é atingido a cada ano por incêndios.

Por onde se poderia avançar na proteção das florestas e da biodiversidade? Está em curso uma discussão semelhante à que ocorre na área do clima, com muitos especialistas propondo a criação de uma entidade fora do âmbito da ONU, porque neste as decisões só são tomadas por consenso, e ele não acontece por causa das divergências entre países-membros. Desde a Rio 92, quando foi criada, a Convenção da Diversidade Biológica está empacada na discussão sobre a soberania dos países detentores da biodiversidade e a repartição de benefícios quando alguma espécie neles pesquisada é transformada em produto industrial patenteado em outro país. Enquanto não se avança, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) diz que um terço do 1,9 milhão de espécies já identificadas está em “situação crítica”. Dos 34 “hotspots” (lugares mais ameaçados no mundo), 2 estão no Brasil: Cerrado e Mata Atlântica.

Detentor da maior biodiversidade planetária, o Brasil precisa prestar atenção a mais um relatório - Indigenous Lands, Protected Areas and Slowing Climate Change -, publicado pela PLoS Biology, com a participação dos pesquisadores brasileiros Britaldo Soares Filho (UFMG) e Gustavo A. B. da Fonseca (diretor de projetos no WWF/EUA). Diz o estudo que a proteção de áreas florestais, com a redução do desmatamento e da degradação, é uma das estratégias mais eficazes e de efeito imediato para enfrentar mudanças climáticas. Por isso, deve ser incorporada às estratégias para redução de emissões de gases poluentes. E, nesse contexto, a prioridade deve ser para a criação de áreas indígenas protegidas e unidades de conservação - que, além do mais, gera trabalho e renda para populações locais. Desde 2002, afirma o estudo publicado, o desmatamento na Amazônia foi 11 vezes menor nas áreas indígenas e unidades de conservação do que nas áreas não protegidas. O cálculo feito é de que até 2050 essas áreas indígenas e protegidas evitarão o desmatamento de 259 mil km2, mais que a área do Estado de São Paulo.

São informações importantes, na hora em que tantas objeções se levantam em certos setores contra a demarcação de áreas indígenas - quando elas são vitais para a conservação da biodiversidade (nossa melhor possibilidade de futuro) e o enfrentamento das mudanças climáticas. Mas há uma questão adicional que pede muita atenção de estudiosos e dos próprios indígenas: o problema da educação nas aldeias.

Há poucos dias, uma comissão de índios de Roraima entregou ao governo do Estado minuta de projeto para a criação da carreira pública de professor indígena - em que o candidato precisará ser indígena, ter aprovação da comunidade, morar na aldeia e ter capacidade de implantar o ensino bilíngue. Nesse último ponto pode estar um complicador, que exige discussão e reflexão.

Nas andanças pelas aldeias do Parque Indígena do Xingu e áreas vizinhas, em todas o autor destas linhas ouviu dos chefes mais velhos e experientes que “o ensino bilíngue é que está acabando com a nossa cultura”. Porque, na visão deles, ao aprenderem português, as crianças e jovens passam a ver televisão e conviver com as culturas de fora. A partir daí, querem viver como os jovens brancos, consumir o que estes consomem e não querem mais viver como índios. Mais grave, não querem ser pajés, porque o caminho para ser pajé é longo, difícil, cheio de sacrifícios e riscos, abstinências, etc. Mas, naquele mundo regido por espíritos - cada árvore, cada animal, tem um espírito regente -, se não houver pajés, que fazem a intermediação entre ele e o cotidiano, a cultura tradicional desaparecerá, pois todos os cantos, as danças, os rituais e modos de viver são relacionados com espíritos. O número de pajés em cada aldeia já diminuiu drasticamente. Há aldeias já ameaçadas de ficar sem nenhum.

É complicado, pois impedir o contato com culturas de fora já é impossível. Mas como preservar, sem pajés, as culturas tradicionais e seus valores políticos e sociais, além do meio ambiente, tão importantes? É uma discussão a que não se pode mais fugir. Faz parte, na verdade, da discussão sobre as estratégias nacionais mais importantes.

*Washington Novaes é jornalista. Este artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo

(Instituto Akatu)

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