domingo, 12 de setembro de 2010

Ceva de onças ocorre no Pantanal



Felipe Milanez
Miranda (MS) - Estou tentando me ajeitar encima do burro. E não está fácil. Quero chegar perto de seu Zé, o velho pantaneiro, que anda na frente em perfeita harmonia com sua besta de trabalho. Esse dia inteiro vou passar ao seu lado, aprendendo sobre o Pantanal, o gado e os animais. “Seu Zé”, digo. Ele me escuta, mas não responde. Ouço o chiado do rádio portátil que está na sua cintura. Vem uma voz. “A onça pegou um bezerro.” Chiado. “O peão tava indo buscar a tropa e deu com ela deitadona encima dele”. Chiado. “Daí ela saiu”. Chiado. Já me perco no assunto. Um ataque de onça? “Pois é”, comenta o velho. “E foi bem pertinho do mangueiro, ele ta dizendo aqui. Antes não tinha disso não.”

Quarta-feira, 11 de agosto. Pantanal da subregião de Miranda. As 4:30, chego no retiro da fazenda Refúgio Ecológico Caiman aonde José Carlos Cleto, 60, pantaneiro, filho de índio terena, trabalha e vive durante os dias úteis. Cedo pela manha, depois de um reforçado café e uma roda de terere, seguimos para dar ração ao gado em uma invernada. No caminho escutamos sobre o ataque da onça, ocorrido cerca de 500 metros da sede da fazenda, onde também funciona um hotel. Não longe do curral – chamado aqui de mangueiro.
Onça raramente ataca humanos. Mas quando o faz, põe o medo na gente. Recentemente, no Pantanal, tem aumentado o número de ataques. Senhor já viu onça? Pergunto. “Vê eu já tinha visto. Mas no ano passado eu passei foi um aperreio”.

Seu Zé foi atacado. Passava com seu burro perto da mata de um capão. A bichona pulou encima. Tava protegendo carniça. O burro assustou. Ele olhou e viu aquele bicho grande vindo pra cima. Fez, por instinto, como faria com touro bravo. Jogou o chapéu encima dela. “Eu não sei o que deu. Mas ela parou pra olhar e eu meti o pé. Corri com o burro. Fiquei com muito medo.”

Ele conta essa passagem devagar. Com peso na voz. Eu fico constrangido de ouvir. Pantaneiro topar com onça, e quase ser predado, é susto sério demais. Minha curiosidade com a história, e com o bicho, parece coisa de guri bobo da cidade. No seu silêncio que segue, percebo que falta intimidade minha para lidar com tema tão caro a um pantaneiro. “Onça”, me diz seu Zé, “a gente respeita.”

E agora, uma come um bezerro do lado de onde estive, ontem, em um cooper no fim da tarde.

Zé Carlos foi picado por cobra, uma jararaca boca de sapo. Quase perdeu a perna. Cobra por perto, ele não gosta. Onça também não. Antes, diz, tinha o “caçador de onça”. O último deles foi o celebre Celestino, o “bugre”, outro descendente do povo terena. Matar onça era coisa de quem sabia. Especialista. Tinha o “matador”, e era só ele. Pelo menos, conta Zé, espantavam elas. “Esse negócio de deixar a onça vivendo do lado da gente...”, desconversa. Seu temor da ousadia é pelo respeito ao bicho.

O dia cai, e volto para a sede da fazenda. Passo, tomado de curiosidade, pela carniça do bezerro. A proximidade de onde ficam os turistas, pesquisadores ou pantaneiros é desagradável. No pescoço do bicho vejo uma corda vermelha que amarra os restos a uma arvore. Penso se o bovino estava amarrado, e a onça o pegou de covardia. Mas não. A corda fora colocada para a carniça continuar ali e a onça voltar. Os urubus haviam feito a festa durante o dia, comendo as vísceras. Logo adiante, na cerca, uma câmera trap – armadilha fotográfica para tirar foto quando a onça vier se fartar de novo. Estirada no pasto ao lado do capão aonde a onça está, a vitima virou uma ceva para atrair onças para os turistas que chegam por ali.

A noite, vejo passar uma caminhonete preta. Tem luz forte iluminando o caminho. É a focagem, o método mais utilizado para encontrar onça. Ver onça é o fetiche maior de quem vem a um safári no Pantanal. Mas que deveria ocorrer de forma natural, topando com ela no ambiente, sem que seja incentivada pela comida fácil a aproximar-se.

Penso nos antigos povos tupis, que tinham um respeito profundo pela onça. No mito da criação, onças eram tidas como a encarnação dos inimigos que haviam devorado seus antepassados. Onças eram espíritos poderosos. Comer o inimigo, a vingança, alimentava a vida social, numa complexa ordem descrita em clássicos da literatura antropológica.

A força da onça, de certa forma, fascinava e amedrontava. Mas o que escuto do gerente da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Dona Aracy Klabin (Caiman é composta pela fazenda de pecuária, da pousada, e da reserva, que deve ter um biólogo para gerenciar a preservação), o biólogo paulista Helder Brandão, no business do metier do ecoturismo, são justificativas mais mundanas do que as sagradas tupis para a aproximação forçada do animal. “Vai ficar que nem essas capivaras, os veados. Mansa”, ele me diz. “As onças vão ficar igual. Cada vez mais perto.” Não tem perigo? “Não, ela se acostuma.”

Amansar onça? Sim. Para o turista ver. Coitada da onça, que sequer foi consultada, e vai estar correndo risco também. E para profissionalizar a iniciativa, diz que o trabalho está sendo feito junto com um grupo de sul-africanos. Diz que eles entendem do negócio.

A ceva é seriamente criticada por biólogos conservacionistas. Em 2008, quando aumentaram os casos de ataques de onças no Pantanal (um pescador foi morto), houve grande debate condenando a prática (e uma série de matérias no site ambientalista OEco). Em casos extremos, pousadas utilizam até animais nativos. O bicho se acostuma. Muda seu modo de vida. Fica dependente. Passa a comer o que lhe dão. E, na falta do rango pronto, atacam os humanos mais próximos. A comida fácil pode atrair vários animais. Com tantos por perto, vem as disputas forçadas por território, que podem ser ferozes e violentas. E um contato mais indesejado com os seres humanos. Toda a ecologia da onça é transformada.

A Caiman, de propriedade de Roberto Klabin, um histórico ambientalista e presidente da ong SOS Mata Atlântica, sempre foi considerada uma das bem sucedidas iniciativas ecológicas de produção agropecuária, ecoturismo e conservação. Antes funcionava lá o Projeto Onça para o conhecimento da espécie e da conservação. Mas sem o caráter científico das aproximações recentes, como a corda no pescoço do bezerro para a carniça não ser levada embora, o rumo das relações com as onças pode ter mudado.

“O senhor já viu onça mansa?”, pergunto ao mestre pantaneiro. “Ela pode até se acostumar. Mas manso esse bicho nunca fica. Uma hora, ela vai te comer”, ensina seu Zé. Conta o caso de uma onça, criada por um fazendeiro, que certo dia deixou de ser gatinho e pulou encima dele. Não chegou a comer o sujeito. Mas depois, nunca mais tiveram confiança um no outro. E ela foi para a jaula.

“Onça a gente tem que respeitar”, ele me diz. Seu Zé sabe de gado. O velho sábio sabe como conviver com os animais selvagens, lado a lado, eles lá, ele cá com a boiada. Respeito mutuo. “Ela é esperta. A gente é que acha que sabe de tudo.”
Zé Carlos: "Onça a gente respeita" (foto: Felipe Milanez)

Bezerro amarrado na Fazenda Caiman. À espera da onças para o deleite dos turistas. (foto: Olivia Lyster)
O ECO

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