quarta-feira, 28 de abril de 2010

A luta contra a biopirataria

A prática é incentivada pela própria legislação de patentes e por países desenvolvidos.

O imenso patrimônio genético da Amazônia, da Mata Atlântica e do Pantanal, com potencial de uso farmacêutico, cosmético e alimentar, necessita de aperfeiçoamento legal, para sua proteção contra o contrabando e apropriação para patenteamento no exterior. O alto número de autos de infração em portos, aeroportos e fronteiras do Brasil, por tentativa de tráfico de fauna e flora (foram 995 só neste ano), confirma o País na rota da cobiça internacional. Todo ano são apreendidos com traficantes de 44 mil a 49 mil animais silvestres. Num país do tamanho do Brasil nem sempre a polícia consegue impedir a ação de contrabandistas, inclusive porque basta a estes levar células in vitro (pedaço de tecido, gotas de sangue etc.), o que deixa claro que esta é uma guerra a ser ganha no plano jurídico. Conflito moderno, em que a salvaguarda precede e encerra a ação policial.

O trabalho de fiscalização interna se apóia no jovem arcabouço administrativo para reprimir o delito, como a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605, de 1998) e o Decreto 5.459, de 2005, que regulamenta o artigo 30 da Medida Provisória 2.186-16, de 2001. Combinadas, tais legislações prevêem sanções meramente administrativas, multa de até R$ 100 mil para pessoa física, R$ 50 milhões para jurídica e prisão de seis a doze meses. São punições brandas diante dos lucros estratosféricos dos infratores, mas ao menos preenchem um pouco a ausência de uma legislação penal que iniba fortemente o delito e de uma legislação internacional que respeite a soberania dos países. A Lei mundial de Parentes, da qual o Brasil é signatário desde 1995, não protege os interesses das nações vítimas de biopirataria. Muito pelo contrário.

O mais grave é ver que o crime da biopirataria é incentivado pela própria legislação de patentes e pelo fato de países desenvolvidos desrespeitarem leis que asseguram propriedade sobre o material genético às nações que o têm nativo em seu território, como a Convenção da Diversidade Biológica.

Definida nos marcos da OMC, a legislação de propriedade intelectual desobriga no registro a comprovação da origem do material genético. Pegando o Brasil, significa que somos obrigados a acatar o registro no exterior de DNA roubado do País, sem direito a um centavo dos lucros vindouros no mercado mundial. Esta legislação assanhou mercenários. Por sua causa, por mais rigorosa que seja a fiscalização, a perda de divisas é hoje uma realidade. Foi assim com a planta Pau-Pereira. Trivial na Amazônia, ela retarda o câncer. Sua tonelada sai por R$ 7 no Brasil. Patenteada e industrializada no exterior, hoje ela volta ao país em forma de tubo. Cada um, contendo 120 gramas do princípio ativo da planta, é vendido a US$ 85. Há muitos outros casos, como o da semente da árvore do cupuaçu, cujo óleo foi patenteado por suposto inventor japonês, diretor da empresa americana “Cupuaçu Internacional”. Não podemos sequer comercializar o princípio ativo do cupuaçu sem pagar royalties ao japonês e ao país onde a registrou.

A biopirataria seduz desde a economia de custos de pesquisa. Muitas vezes ela é possível apenas com contrabando de conhecimento, informação acumulada em milênios pelos povos da floresta. Descobrir com indígenas que o uso de determinada seiva cura uma doença pode abreviar várias etapas da pesquisa e representar uma economia de até 80% dos investimentos convencionais para fabricação de um novo produto. Pelo caminho normal, a descoberta de um fármaco consome em média US$ 350 milhões, de cinco a 13 anos de pesquisa. Com o contrabando de informação, em tese permite poupar US$ 280 milhões.

O cenário jurídico atual põe a questão em termos de vale-tudo. Legitima a dominação asséptica de povos sobre outros, com danos à irreversíveis ao desenvolvimento alheio. É preciso modificar a Lei de Patentes, condicionando registros à autorização emitida pelos governos dos países provedores. Novos acordos devem proibir o patenteamento de organismos sem especificação de origem e forma de obtenção, e garantir propriedade intelectual às populações que geraram o conhecimento. Seria bem-vindo também o acréscimo de artigos à legislação de crimes ambientais, como forma de dar efetividade ao trabalho de fiscalização. É preciso tipificar melhor as penalidades em relação ao tráfico de animais e à biopirataria. Hoje, a falta de objetividade põe no mesmo banco de réus um traficante internacional e uma idosa que possua um papagaio há duas décadas.

* Flávio Montiel é diretor de Proteção Ambiental do Ibama.
(Envolverde/JB Ecológico)

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