terça-feira, 9 de novembro de 2010

"A felicidade é uma ideia fundamental"


Eduardo Febbro, da Página/12*

A figura esbelta, a firmeza juvenil da voz e o aperto de mão sólido – pouco comum na França – introduzem o personagem real de Alain Badiou. Esse filósofo original é o pensador francês mais conhecido fora das fronteiras do seu país. Sua obra, extensa e sem concessões, abrange uma crítica ferrenha ao que Alain Badiou chama de “materialismo democrático”, isto é, um sistema humano em que tudo tem valor mercantil. Badiou nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam estar queimado pela história: o comunismo.

Em sua pena, Badiou fala mais da “ideia comunista” ou ” hipótese comunista” antes que do sistema comunista em si. Segundo o filósofo francês, tudo o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado. A ideia comunista “ainda está, historicamente, em seus inícios”, diz Badiou.

O horizonte de sua filosofia é polifônico: seus componentes não são a exposição de um sistema fechado, mas sim um sistema metafísico exigente que inclui as teorias matemáticas modernas – Gödel – e quatro dimensões da existência: o amor, a arte, a política e a ciência. Pensador crítico da modernidade numérica, Badiou definiu os processos políticos atuais como uma”guerra das democracias contra os pobres”. O filósofo francês é um excelso teórico dos processos de ruptura e não era mero panfletário. Badiou convoca com método a repensar o mundo, a redefinir o papel do Estado, traça os limites da “perfeição democrática”, reinterpreta a ideia de República, reatualiza as formas possíveis e não aceitas de oposição e coloca no centro da evolução social a relegitimação das lutas sociais.

Alain Badiou propõe um princípio de ação sem o qual, sugere, nenhuma vida tem sentido: a ideia. Sem ela, toda existência é vazia. Em seus mais de 70 anos, Badiou introduziu em sua reflexão a questão do amor em um livro brilhante e comovedor que acaba de sair na França e no qual o autor de “O ser e o evento” (Ed. UFRJ, 1998) define o amor como uma categoria da verdade, e o sentimento amoroso, como o pacto mais elevado que os indivíduos podem moldar para viver.

Eis a entrevista.

A “ideia” e o “materialismo democrático”

Página/12 - O senhor defende um princípio básico da nossa inscrição na existência, do qual se desprendem também nossos compromissos políticos: uma vida sem ideias não é uma vida.

Alain Badiou - A verdadeira pergunta da filosofia consiste em saber o que é uma vida verdadeira, o que é viver, o que é o destino. Mas a filosofia deve contribuir com respostas mínimas a essas perguntas. Minha resposta, que, por sua vez, é uma hipótese e uma conclusão, é que a verdadeira vida é uma via que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de outra forma, uma vida que aceita ser outra coisa do que uma vida animal. Em todas as situações, sempre persiste a vontade de querer algo, e essa vontade só tem sentido em relação a uma vontade de transformação.

Página/12 - Como essa ideia da ideia se inscreve em plena ditadura do que o senhor chama de “materialismo democrático”? Em suma, como existe, com que ideia, em um mundo onde tudo tem forma de produto?

Alain Badiou - Esse é o principal problema da vida contemporânea. Estabeleceu-se um regime de existência no qual tudo deve ser transformado em produto, em mercadoria, incluindo os textos, as ideias, os pensamentos. Marx havia antecipado isso muito bem: tudo é medível segundo seu valor monetário. O que é, então, uma vida sob o signo da ideia em um mundo como esse? É preciso uma distância com a circulação geral. Mas essa distância não pode ser criada só com a vontade. É preciso que algo nos ocorra, um acontecimento que nos leve a tomar posição frente ao que passou. Pode ser um amor, um levante político, uma decepção, enfim, muitas coisas. Ali é posta em jogo a vontade para criar um mundo novo que não estará à ordem do mundo tal como ele é, com sua lei de circulação mercantil, mas sim por um elemento novo da minha experiência.

A “ideia comunista”

Página/12 - O senhor é um dos poucos pensadores que ainda defendem isso que o senhor chama de “a ideia comunista”. O senhor propõe o comunismo como uma ilusão atual.

Alain Badiou - Sei muito bem que algumas empresas que se reivindicaram como comunistas fracassaram, porque não conseguiram criar o mundo novo que pretendiam e acabaram provocando danos consideráveis e situações terríveis. Temos duas opções: ou dizemos que essa hipótese comunista de um mundo que não estaria regulado pela mercadoria, o produto, não pode se realizar, e então nos resignamos ao mundo tal como ele é; ou mantemos a hipótese comunista. Se a mantivermos, também é preciso conservar a palavra. Se tiramos da experiência histórica a conclusão de que é preciso abandonar a palavra, isso seria um retrocesso não necessário. Podemos fazer nosso próprio balanço do que ocorreu no século XX a partir da possibilidade de redefinir o que é o comunismo como porvir possível. Essa é a minha escolha. Sei que se trata de um trabalho longo, que requer muita reflexão e que será mais mundial do que antes. A primeira batalha consiste em manter a força e o significado dessa palavra.

Página/12 - O que pode se recuperar, o que pode se voltar a ler do que o comunismo foi, com todo um naufrágio real na sua prática? Que mensagem ainda existe na ideia comunista?

Acredito que podemos voltar ao que o comunismo queria dizer não só para Marx, mas também para muitos revolucionários do século XIX. Para eles, o comunismo tinha um sentido comum que era a ideia de uma sociedade extraída do princípio do interesse, isto é, uma sociedade que não é governada pelo fato de que um homem busca seu interesse, mas sim pela ideia da associação dos homens. É essa associação que define os projetos ou as metas coletivas. No século XX, essa ideia se converteu na de um Estado todo-poderoso que resolve todos os problemas propostos à sociedade. Entre a definição do século XIX e a do século XX há uma enorme distância.

Página/12 - O que ocorreu entre as duas?

A obsessão do poder. As organizações operárias, militantes, revolucionárias, que haviam sido esmagadas várias vezes no século XIX, se obstinaram com a ideia do poder e a pergunta “como vencer?”. Houve duas alternativas a essa convicção:há os que se uniram à democracia parlamentar ordinária com a ideia de vencer fazendo-se eleger. Mas, claro, foram eleitos e não mudaram nada, o mundo continuou sendo o mesmo. Do outro lado, há aqueles que se lançaram na organização da sublevação armada. Mas, lamentavelmente, fizeram isso mediante a militarização violenta da ação política, que desembocou em Estados militarizados que resolviam os problemas com a violência. Chegamos, de alguma forma, a um final porque nem a hipótese da via pacífica e eleitoral, nem a hipótese de um aparato estritamente militar encarregado de resolver os problemas políticos levaram ao comunismo, segundo o sentido original do termo. E o problema da ação política atual é totalmente obscuro. Assistimos a uma mundialização capitalista sem freios, e, nela, as forças políticas dão mostras de mais debilidade do que de forças.

A impunidade e a violência

Seja qual for a situação mundial na qual nos encontremos, na África, no Oriente Médio, na Ásia, na América Latina ou nas democracias ocidentais, enfrentamos a mesma indolência, o mesmo selvagismo, a mesma impunidade, a mesma assimetria por parte dos poderes, a mesma violência.

Estou profundamente convencido de que a forma em que a sociedade está organizada em escala planetar alimenta e cria chamados à violência. A razão principal radica em que, para o sistema, a realidade humana é a concorrência. A ideia de Hobbes segundo a qual o homem é um lobo para o homem constitui a convicção profunda da nossa sociedade. Por essa razão, gera violência constante: a sociedade dá o direito geral para que, em seu próprio interesse, se pisoteie os demais. A imprensa mais ordinária faz o elogio dessa violência. Os jornais falam de como tal banco esmagou o outro, de como as pessoas foram expulsas etc., etc. Isso, dizem, é a vida, a concorrência. Mas é preciso pagar o preço.

Enquanto não enunciarmos que as sociedades devem se constituir com base na associação e não na concorrência, permaneceremos no elemento primordial da violência. Não digo que a violência vai desaparecer. A sociedade alimenta sistematicamente a violência e depois se vê obrigada a combatê-la com uma repressão terrível. Como a violência é constantemente incitada, faz falta um aparato policial para controlá-la. O resultado é que terminamos agregando à violência social a violência do Estado. Devemos mudar os pilares da existência coletiva. Mas o ser humano é capaz de outra coisa que toda essa violência: é capaz de entrega, de amor. Tem uma dupla capacidade. Pode ser um animal de concorrência, mas também um animal altruísta, interessado na ação coletiva, capaz de encarnar ideais, pode ser um apaixonado ou um cientista desinteressado. Saber que aspecto do ser humano nós alentamos é uma decisão fundamental.

Dentro dos sistemas políticos ocidentais, há algo que se degradou profundamente no último quarto de século. Essa evolução drástica está perfeitamente retratada em dois livros seus: o “Manifesto pela filosofia” (Aoutra, 1991), dos anos 1980, e o “Segundo Manifesto”, publicado no ano passado.

O Primeiro Manifesto reúne as últimas esperanças do mundo de antes. Mas, nos últimos 20 anos, houve coisas essenciais que mudaram, entre elas, a hegemonia do capitalismo liberal competitivo e violento. Interveio também outra coisa: uma espécie de clara cumplicidade com esse sistema por parte dos intelectuais, incluindo os franceses. Foi uma forma de dizer que não se poder fazer nem esperar outra coisa, que o mundo natural é assim. Isso se acelerou com o desaparecimento da União Soviética e dos Estados Socialistas. Em minha opinião, estes já haviam morrido há muito tempo. Sua experiência já não tinha mais força, já não propunha nada novo à humanidade. O que é certo é que o desaparecimento completo de tudo isso foi vivido pelo capitalismo liberal como uma vitória que lhe abria o espaço do mundo inteiro para se desenvolver.

As formas de violência e de cumplicidade intelectual com essa violência se desenvolveram muito. Acho que isso começou no final dos anos 1970. A nova figura fundamental é que a opinião, ao invés de estar drasticamente dividida, é massivamente consensual. Esse resultado muda o horizonte, a perspectiva de um filósofo. O filósofo é aquele que sempre luta contras as opiniões dominantes, isto é, as opiniões do poder. Hoje, o combate é muito mais complexo e singular que o dos anos 1960. Nesses anos, os filósofos críticos e comprometidos politicamente dominavam o cenário intelectual. Isso se inverteu. Hoje, eles são os cachorros guardiões daqueles que mandam. Estivemos, com os anos Bush, em uma combinação extraordinária de violência e de mentiras. No fundo, os ocidentais, incluindo a população, foram culpados porque aceitaram tudo isso. É preciso sair de tudo isso. A humanidade não poderá continuar nesse caminho, senão irá rumo à sua eliminação. Trata-se de reconstruir uma visão de mundo e da ação afastada desse horror.

A ilusão tecnológica

A tecnologia também faz parte dessa sociedade, dessa violência. As novas tecnologias instauraram uma espécie de ilusão igualitária, que é muito incômoda, que parece dizer nas entrelinhas: posto que estamos conectados, todos somos iguais. Pois bem, não há nada mais virtual do que essa igualdade. A realidade está presente, as diferenciações são patentes, o pensamento tecnológico contaminou o pensamento humano.

A tecnologia é a realização de uma ideologia que existia antes. Acredito que é a ideologia que cria a tecnologia, e não ao contrário. Essa falsa concepção da igualdade é muito antiga. A desigualdade atual considera de forma abstrata que os diferentes indivíduos são iguais. Pretende-se crer que os indivíduos têm a seu alcance o mesmo sistema de possibilidades. As pessoas não têm a mesma realidade, mas se argumenta que contam com as mesmas possibilidades. É a mitologia com a qual se dizia que, nos EUA, o vendedor de jornais pode se converter em milionário e, por conseguinte, é igual a qualquer milionário. Com esse argumento, a única diferença está em que um realizou a possibilidade de ser milionário, e o outro, não. Há então uma concepção tradicional e falaz da igualdade própria do mundo burguês e competitivo. Todos podemos competir! Essa é a igualdade competitiva.

Mas penso que a tecnologia da Internet e a conexão universal são a realização material e tecnológica dessa ilusão igualitária. Essa ilusão está muito ligada ao materialismo democrático porque inclui a ideia de que todas as opiniões valem e são iguais. Estamos conectados, e o que eu digo vale tanto quanto o que o outro diz! Com tal de que as coisas circulem, tem valor. Isso é falso. O real continua sendo violentamente desigual, competitivo, brutal, indolente. Não basta ter uma máquina onde podemos dizer o que pensamos para ter acesso à igualdade. Na realidade, quanto mais se expande esse tipo de igualdade ilusória, menos poder as pessoas têm. Observe a crise que vivemos: estávamos todos conectados e logo irrompeu a realidade para nos dizer: atenção, de repente tudo pode ruir! A crise veio para lembrar que essa espécie de euforia igualitária na qual estávamos era artificial. No mundo competitivo, a igualdade é sempre artificial. E essa igualdade artificial pode ser uma igualdade tecnológica justamente porque a tecnologia é um artifício.

A reinvenção do amor

Página/12 - O senhor é um dos poucos filósofos contemporâneos que introduziu em sua reflexão algo único, isto é, o amor. O senhor repete frequentemente que é preciso reinventar o amor. Como se faz isso?

O amor é um gesto muito forte, porque significa que é preciso aceitar que a existência de outra pessoa se converta em nossa preocupação. Minha ideia sobre a reinvenção do amor quer dizer o seguinte: posto que o amor se refere a essa parte da humanidade que não está entregue à concorrência, ao selvagismo; posto que, em sua intimidade mais poderosa, o amor exige uma espécie de confiança absoluta no outro; posto que vamos aceitar que esse outro esteja totalmente presente em nossa própria vida, que nossa vida esteja ligada de maneira interna a esse outro, pois bem, já que tudo isso é possível, isso nos prova que não é verdade que a competitividade, o ódio, a violência, a rivalidade e a separação são a lei do mundo.

O amor está ameaçado pela sociedade contemporânea. Essa sociedade bem que gostaria de substituir o amor por uma espécie de regime comercial de pura satisfação sexual, erótica etc. Então, o amor deve ser reinventado para ser defendido. O amor deve reafirmar seu valor de ruptura, seu valor de quase loucura, seu valor revolucionário como nunca se fez antes. Não devemos deixar que o amor seja domesticado pela sociedade atual – que sempre busca domesticá-lo. Em outros tempos, as sociedades clericais e tradicionais buscaram domesticá-lo pelo casamento e pela família. Hoje, busca-se domesticar o amor com uma mistura de pornografia livre e de contrato financeiro. Mas devemos preservar a potência subversiva do amor e apartá-lo dessas ameaças. E isso é extensivo a outras coisas: a arte também deve se afastar da potência do mercado, a ciência igualmente. Ali onde há um pensamento humano ativo e desinteressado, há um combate para libertá-los dos interesses.

Página/12 - O senhor também diz que o amor é um processo de verdade.

O amor traz à luz a diferença. No amor, aceitamos nos colocar de dois a dois para explorar não aquilo que os românticos acreditavam, isto é, a fusão, mas sim para aceitar a diferença do outro, aceitá-la apaixonadamente. O amor é todo o contrário do individualismo que nos propõem. É-nos proposto uma soberania do indivíduo, mas, na realidade, o indivíduo sozinho é soberano de seus próprios interesses. Ao fazermos algo interessante, deixamos de ser soberanos. Se realizamos uma demonstração matemática, os outros matemáticos virão verificar se é certa, dependemos deles. No amor, acontece o mesmo. A soberania é compartilhada com a presença do outro. A ideia da soberania individual é pobre, porque excluiu as atividades interessantes da vida humana. O indivíduo se torna criador quando aceita deixar de ser soberano.

Página/12 - O que resta a um casal apaixonado em um mundo como este? A revolta, a música, a poesia, o sexo, a indiferença, a violência, a sabedoria? Quais são os eixos de uma emancipação positiva frente a essa máquina infernal que é o mundo?

Na situação de crise e de desorientação atual, o mais importante é manter as mãos sobre o timão da experiência que estamos realizando, seja no amor, na arte, na organização coletiva, no combate político. Hoje, o mais importante é a fidelidade: em um ponto, embora seja em um só, é preciso tentar não ceder. E para não ceder devemos ser fiéis ao que aconteceu, ao acontecimento. No amor, é preciso ser fiel ao encontro com o outro, porque vamos criar um mundo a partir desse encontro. Claro, o mundo exerce uma pressão contrária e nos diz: “Cuidado, defenda-se, não se deixe abusar pelo outro”. Com isso, nos está sendo dito: “Voltem para o comércio ordinário”. Então, como essa pressão é muito forte, o fato de manter o timão para o rumo, de manter vivo um elemento de exceção, já é extraordinário. É preciso lutar para conservar o excepcional que nos ocorre. Depois veremos. Dessa forma, salvaremos a ideia e saberemos o que é exatamente a felicidade. Não sou um asceta. Não estou pelo sacrifício. Estou convencido de que, se conseguirmos organizar uma reunião com operário e pusermos em marcha uma dinâmica, se pudermos superar uma dificuldade no amor e nos reencontrarmos com a pessoa que amamos, se fizermos uma descoberta científica, aí começamos a compreender o que é a felicidade. A felicidade é uma ideia fundamental.

*Tradução: Moisés Sbardelotto.

(IHU On-Line)

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