sábado, 9 de abril de 2011

Boaventura: Inconformismo e Criatividade

O capitalismo necessita de adversários que atuem como corretivos da sua tendência para a irracionalidade e para a auto-destruição, a qual lhe advém da pulsão para funcionalizar ou destruir tudo o que pode interpor-se no seu inexorável caminho para a acumulação infinita de riqueza, por mais anti-sociais e injustas que sejam as consequências.
Boaventura de Sousa Santos

É hoje consensual que o capitalismo necessita de adversários
credíveis que atuem como corretivos da sua tendência para a
irracionalidade e para a auto-destruição, a qual lhe advém da pulsão para
funcionalizar ou destruir tudo o que pode interpor-se no seu inexorável
caminho para a acumulação infinita de riqueza, por mais anti-sociais e
injustas que sejam as consequências. Durante o século XX esse corretivo
foi a ameaça do comunismo e foi a partir dela que, na Europa, se construiu
a social-democracia (o modelo social europeu e o direito laboral). Extinta
essa ameaça, não foi até hoje possível construir outro adversário credível a
nível global.

Nos últimos trinta anos, o FMI, o Banco Mundial, as agências
de rating e a desregulação dos mercados financeiros têm sido as
manifestações mais agressivas da pulsão irracional do capitalismo. Têm
surgido adversários credíveis a nível nacional (muitos países da América
Latina) e, sempre que isso ocorre, o capitalismo recua, retoma alguma
racionalidade e reorienta a sua pulsão irracional para outros espaços. Na
Europa, a social-democracia começou a ruir no dia em que caiu o Muro de
Berlim. Como não foi até agora possível reinventá-la, o FMI intervém hoje
na Europa como em casa própria.

Poderá surgir em Portugal algum adversário credível capaz de
impedir que o país seja levado à bancarrota pela irracionalidade das
agências de rating apostadas em produzir a realidade que serve os
interesses dos especuladores financeiros que as controlam com o objetivo
de pilhar a nossa riqueza e devastar as bases da coesão social? É possível
imaginar duas vias por onde pode surgir um tal adversário. A primeira é a
via institucional: líderes democraticamente eleitos reúnem o consenso das
classes populares (contra os media conservadores e os economistas
encartados) para praticar um ato de desobediência civil contra os credores
e o FMI, aguentam a turbulência criada e relançam a economia do país com
maior inclusão social. Foi isto que fez Nestor Kirchner, Presidente da
Argentina, em 2003. Recusou-se a aceitar as condições de austeridade
impostas pelo FMI, dispôs-se a pagar aos credores apenas um terço da
dívida nominal, obteve um financiamento de três bilhões de dólares da
Venezuela e lançou o país num processo de crescimento anual de 8% até
2008. Foi considerado um pária pelo FMI e seus agentes. Quando morreu,
em 2010, o mesmo FMI, com inaudita hipocrisia, elogiou-o pela coragem
com que assumira os interesses do país e relançara a economia.

Em Portugal, um país integrado na UE e com líderes treinados na ortodoxia
neoliberal, não é crível que o adversário credível possa surgir por via
institucional. O corretivo terá de ser europeu e Portugal perdeu a
esperança de esperar por ele no momento em que o PSD, de maneira
irresponsável, pôs os interesses partidários acima dos interesses do país.

A segunda via é extra-institucional e consiste na rebelião dos
cidadãos inconformados com o sequestro da democracia por parte dos
mercados financeiros e com a queda na miséria de quem já é pobre e na
pobreza de quem era remediado. A rebelião ocorre na rua mas visa
pressionar as instituições a devolver a democracia aos cidadãos. É isto que
está ocorrendo na Islândia. Inconformados com a transformação da dívida de bancos privados em dívida soberana (o que aconteceu entre nós com o
escandaloso resgate do BPN), os islandeses mobilizaram-se nas ruas,
exigiram uma nova Constituição para defender o país contra aventureiros
financeiros e convocaram um referendo em que 93% se manifestaram
contra o pagamento da dívida. O parlamento procurou retomar a iniciativa
política, adoçando as condições de pagamento mas os cidadãos resolveram
voltar a organizar novo referendo, o qual terá lugar a 9 de Abril. Para forçar
os islandeses a pagar o que não devem as agências de rating estão a usar
contra eles as mesmas técnicas de terror que usam contra os portugueses.
No nosso caso é um terror preventivo dado que os portugueses ainda não se revoltaram. Alguma vez o farão?

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Carta Maior

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