sábado, 17 de abril de 2010

As relações homem-animal na organização social: uma breve história para leigos e iniciantes

Artigo de Carlos José Saldanha Machado

Carlos José Saldanha Machado é antropólogo da ciência, pesquisador em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocurz). Artigo enviado pelo autor para o "JC e-mail":

A prática científica secular de uso de animais em experimentação se mantém constante nas pesquisas voltadas ao desenvolvimento de novos produtos biomédicos para a saúde pública. Mas, como as pesquisas científicas não se realizam no vazio, observa-se que são partes envolvidas, nas últimas quatro décadas, juntamente com o movimento pelos direitos dos animais, de um intenso e longo debate internacional e nacional sobre a fronteira criada para separar o mundo humano do mundo natural e sua adoção pelo sistema jurídico.

A intensa discussão sobre o estatuto moral dos animais tem superado, em apenas quatro décadas, o volume de textos que se produziu nos últimos dois mil anos. Diversas ideias foram traduzidas ao longo dos processos legislativos nacionais e incorporadas nas respectivas leis, isto é, em uma das maneiras pelas quais os seres humanos regulam as relações entre o indivíduo e o grupo, as obrigações de parentesco, as questões de origem e propriedade, o tratamento de litígios, as regras de status e poder, a distinção entre o sagrado e o profano e as relações com os animais.

No país que mais utiliza animais em pesquisa, os EUA, a oposição generalizada da opinião pública sobre a utilização de animais de abrigos e de refúgios levou os National Institutes of Health (NIHs) a publicar, em 1963, um guia para o bem-estar dos animais de laboratório. Três anos depois, é aprovado o Animal Welfare Act (AWA). Apesar de não tratar exclusivamente de animais de laboratório, esta lei tem o objetivo de regular o transporte, cuidado e uso de certas espécies de animais utilizados na experimentação. Naquela ocasião, ratos, camundongos e pássaros foram excluídos da proteção.

Nos anos seguintes, o Animal Welfare Act foi alterado várias vezes, e várias tentativas foram feitas para promover uma maior regulamentação com a apresentação de diversas propostas de lei de proteção dos animais no Congresso americano. Já na década de 1990, organizações de proteção dos animais começaram a questionar a exclusão de ratos, camundongos e pássaros da AWA.

Do outro lado do Atlântico, na Inglaterra, nos anos 1970, foram introduzidas, sem sucesso, proposta de leis em ambas as casas do Parlamento. Mas, em 1986, a centenária legislação inglesa foi finalmente substituída pelo Animals (Scientific Procedures) Act.

Mas a própria ciência tem participado daquelas mudanças culturais que expressam um momento particular da relação do homem ocidental com a natureza, com outros homens e, particularmente, como os animais; relações que se desenvolvem, ao mesmo tempo, no processo de urbanização acelerada das sociedades ocidentais.

Há um crescente interesse científico em ver os animais como tendo sensibilidade, particularmente no campo emergente da etologia cognitiva, com sua ênfase no "espírito animal" e revisões teóricas de conceitos, tais como, "cognição", "representação animal" e "consciência". Tais estudos têm contribuído para as inúmeras controvérsias e embates entre pesquisadores e movimentos de defesa dos direitos dos animais.

Nesse vasto contexto de mudanças, qualquer pessoa nos Estados Unidos e na Inglaterra que inflija intencionalmente dor a um animal está fazendo algo condenável segundo a lei e os costumes da cultura dominante no meio urbano. Há, evidentemente, maneiras de fazê-lo, que permanecem dentro da lei, como a atividade de caça (que muitas vezes pode causar grande sofrimento) e da própria ciência. Mas, as pessoas, mesmo legalmente amparadas, se sentem cercadas e incompreendidas.

É digno de nota o fato de que durante o período que antecedeu ao ato de proibição da caça com cães na Inglaterra e no País de Gales (até fevereiro de 2005), a comunidade pró-caça tentou argumentar que a caça era importante para as comunidades rurais, tanto culturalmente quanto economicamente, e que os moradores das cidades que se opunham à caça o fazem sem compreender o modo de vida rural.

Resumindo essa brevíssima história, existem hoje, na maioria dos países ocidentais, simultaneamente, leis que regulamentam o uso de animais em experimentos, sendo a lei brasileira promulgada recentemente (sobre a Lei brasileira, ver JC e-mail nos: 3801, 09/07/09; 3835, 26/08/09; 3834, 25/09/09; sobre a Lei norte-americana, ver JC e-mail no 3913, 17/12/09) e contestações sobre a eficácia dessas leis. Enquanto muitos cientistas consideram que a lei protege os animais e o seu bem-estar, os antivivisseccionistas acham que a lei só serve para proteger os interesses dos cientistas.

Diante dessa situação da dinâmica da organização e reorganização social das sociedades ocidentais contemporâneas, pode-se concluir que, sem uma moratória entre os atores envolvidos naquele embate político-científico e a construção de uma arena de debates estruturada com normas de funcionamento equitativo e pluralista, para se chegar a uma saída negociada do impasse instaurado, a batalha jurídica e as ações de intimidação e difamação assumirão o primeiro plano do espaço público. No caso brasileiro em particular, cabe se perguntar quem ganha e quem perde nessa relação de força?

Nenhum comentário:

Postar um comentário