sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A ecologia deles e a nossa - Revista Ecológico

A ecologia deles e a nossa - Revista Ecológico


A ecologia deles e a nossa




Imagem: Domínio Público

06/01/2016 - por Razmig Keucheyan - Fonte: Outras Palavras*

Há mais de 40 anos, filósofo André Gorz alertava: capitalismo tentaria capturar causas ambientais. Antídoto: a ideia radical de que uma boa vida não está ligada a privilégios, mas à construção do comum

Há 42 anos, em 1974, André Gorz publicava na revista Le sauvage um texto famoso, intitulado Leur écologie et la nôtreLe Monde diplomatique reeditou em 2010 extratos desse texto. E compreende-se porque: é simplesmente espantosa a previsão de Gorz, sua capacidade de antecipar a evolução das relações entre o capitalismo e a natureza. Gorz descreve desde 1974 o mundo em que o nosso está se transformando.
Veja o que diz Gorz:
“A consideração de exigências ecológicas (…) já tem bastante adeptos capitalistas, porque sua aceitação por parte do poder do dinheiro torna-se uma séria probabilidade. [A luta ecológica] pode criar dificuldades para o capitalismo e forçá-lo a mudar; mas, depois de resistir por muito tempo na base da força e da astúcia, o capitalismo finalmente cederá, porque o impasse ecológico terá se tornado inelutável; ele absorverá essa restrição, como absorveu todas as outras.”
O argumento de Gorz é simples: o capitalismo é um sistema resiliente. Pode encontrar dificuldades por causa da crise ecológica, mas no final se adaptaráPor que Gorz diz isso? Se o capitalismo conseguiu existir durante três séculos, é porque beneficiou-se de uma natureza gratuita, uma natureza que não era preciso “reproduzir”. Essa natureza gratuita, o capitalismo a utilizou como input e como output ao mesmo tempo. A natureza constituiu-se em fonte de inputs gratuitos para o capitalismo, pois, desde que existe, o sistema captura os recursos naturais “brutos” para transformá-los em produtos. Mas a natureza constituiu-se também em output, uma “cesta de lixo global” onde são despejados os dejetos da acumulação do capital, isso a que os economistas neoliberais chamam pudicamente de “externalidades negativas”.
Com a crise ambiental, a natureza não exerce mais essa dupla função de input e output gratuitos para o capitalismo. A dialética do sistema e da natureza entra em crise. Certos recursos naturais cruciais para a vida das sociedades modernas (água, combustíveis fósseis, ar não poluído etc.) estão desaparecendo, enquanto a manutenção ou limpeza do meio ambiente tornam-se mais e mais caros. Por exemplo, o custo da poluição para o sistema de saúde não para de crescer, pesando sobre a taxa de lucro. A conclusão que alguns tiram desse fato é clara: o capitalismo não vai durar muito mais tempo, precisamente porque tem uma necessidade imperativa dessa natureza gratuita. Sem ela, a acumulação do capital perde seu substrato material.
Gorz não está de acordo com esse raciocínio, ainda muito comum na esquerda – ele acha que o capitalismo saberá absorver a restrição ambiental. Com a crise ecológica, a natureza deve agora ser “reproduzida”, tal como a força de trabalho. “Reproduzida” significa que volumes crescentes de capital terão de ser investidos para despoluir ou proteger as populações – ou determinadas porções privilegiadas da população – das catástrofes naturais.
Um exemplo é o projeto de gestão “ecológica” do East River em Nova York, o East Side Coastal Resiliency Project. Com o custo de meio bilhão de dólares, é a primeira etapa da adaptação da cidade às mudanças climáticas e a catástrofes naturais, cada vez mais numerosas e intensas. Foi lançado após a devastação provocada na cidade pelo furacão Sandy, em outubro de 2012. É liderado pela estrelada empresa BIG, de arquitetos dinamarqueses (a arquitetura “verde” é um negócio florescente), e está voltado à proteção das áreas mais ricas de Manhattan.
O capital mobilizado para a “reprodução” da natureza terá dois efeitos possíveis sobre o sistema: ou a taxa de lucro baixará, pois essa reprodução será pouco rentável; ou então o preço das mercadorias produzidas dessa maneira aumentará, de forma que o lucro seja mantido, ou até aumente. Essa segunda eventualidade é a mais provável, diz Gorz. O imperativo de reprodução da natureza levará a uma alta geral dos preços, as mercadorias ou as infraestruturas se tornarão inacessíveis à população – mas acessíveis aos endinheirados. O poder de compra dos mais pobres será comprimido e as desigualdades aumentarão devido à crise ambiental.
André Gorz: "O capitalismo saberá absorver a restrição ambiental" - Imagem: Reprodução
Gorz conclui assim:
“Levar em conta os custos ecológicos terá, em resumo, os mesmos efeitos sociais e econômicos da crise do petróleo. E o capitalismo, longe de sucumbir à crise, irá geri-la como sempre fez: grupos financeiros bem situados lucrarão com as dificuldades de grupos rivais para absorver a preço baixo e expandir sua apropriação sobre a economia. O poder central reforçará o controle sobre a sociedade: tecnocratas calcularão normas “ótimas” de despoluição e produção, elaborarão as regulamentações, estendendo os domínios da ‘vida programada’ e o campo de ação dos aparelhos de repressão.”
Aquilo que Gorz podia somente imaginar, extrapolar, é o que vemos tomar forma diante dos nossos olhos. Assistimos hoje à adaptação do capitalismo à crise ambiental, uma adaptação de duas ordens. A primeira, reflexo do capitalismo em situação de crise, é sempre mercantilizar, mercantilizar a natureza. Essa mercantilização opera hoje, por exemplo, por meio da criação de proodutos financeiros “segmentados” sobre a natureza, as catástrofes naturais ou a biodiversidade. Os mercados de carbono, os derivativos climáticos, os títulos de catástrofe ou ainda os bancos de ativos de biodiversidade estão entre esses produtos financeiros [1].
Mas o capitalismo não se contenta em mercantilizar a natureza, é mais esperto que isso. Contrariamente ao que a esquerda frequentemente imagina, os capitalistas são bem capazes de pensar a longo prazo, em especial quando seus lucros estão em jogo. Mais exatamente, em épocas de crise como hoje, as racionalidades capitalistas de curto e longo prazo entram em conflito – e as atuais hesitações das classes dominantes em relação à crise climática são testemunhas disso.
É o que demonstra o caso da BlackRock — a mais importante gestor de ativos financeiros do mundo. Ele gere cerca de 5 trilhões de euros. Publicou, em setembro passado, um relatório intitulado Adapting portfolios to climate change [2], no qual diz que os investidores devem a partir de agora incluir, em suas estratégias de investimento, o respeito ao ambiente nas empresas em que investem: emissão de gases de efeito estufa, danos à biodiversidade, consumo de água etc. A BlackRock lhes diz, preto no branco: é preciso investir somente nas empresas que se colocam seriamente a questão das mudanças climáticas e de seus efeitos sobre sua rentabilidade.
BlackRock é a maior gestora de ativos financeiros do mundo - Imagem: Reprodução
Esses fundos de investimento por certo não foram subitamente convertidos ao ambientalismo. O argumento da BlackRock é que, depois da COP21, a pressão da opinião pública e dos governos sobre as corporações vai aumentar, e a regulamentação ambiental será mais estrita. Isso significa que as empresas que não levam a sério essa dimensão irão ver-se em dificuldades e serão, portanto, menos lucrativas aos investidores. A expressão consagrada pelos financistas em inglês é “strand assets”, um termo que designa os ativos financeiros cujo valor diminuirá à medida que a regulação ambiental se tornar mais exigente. O relatório da BlackRock vai considerar como inevitável até a redução futura dos subsídios estatais para as indústrias fósseis.
Essa inesperada virada ecológica da BlackRock, contudo, entra rapidamente em contradição com a necessidade de realizar lucros aqui e agora. A imprensa financeira relata que, alguns meses antes da publicação desse relatório, a BlackRock impediu a votação de uma resolução “ecológica” durante a assembleia anual de acionistas da ExxonMobil. [3] A ExxonMobil é uma gigante do petróleo, o segundo valor de mercado do mundo, atrás apenas da Apple. O volume de negócios chega ao nível do PIB da Áustria. A BlackRock e outra gestora de ativos, a Vanguard, são os dois maiores acionistas da Exxon; juntas, possuem 11% do capital.
Um grupo de acionistas “ético”, que detém ações da Exxon, submeteu no início do ano à assembleia uma resolução pela qual a Exxon deve explicitar sua estratégia pós COP21. Como o conselho de administração da Exxon enxerga os efeitos do acordo de Paris sobre seus investimentos futuros, em matéria de energias fósseis? Não seria tempo de reorientar esses investimentos em direção a energias renováveis?
Os representantes da BlackRock na assembleia de acionistas votaram contra essa resolução. Eles não se opuseram apenas a que a Exxon renuncie às energias fósseis. Também impediram sua direção de explicar para os acionistas quais as consequências do Acordo de Paris para a estratégia de investimento futuro da corporação. Em resumo, a BlackRock fez exatamente o contrário do que preconiza seu relatório.
ExxonMobil: maior gigante de petróleo do mundo tem volume de negócio no valor do PIB da Áustria - Imagem: Reprodução
Como explicar essa esquisofrenia dos capitalistas, da qual poderíamos dar numerosos exemplos? De um lado, publica-se um documento afirmando que os parâmetros ambientais devem entrar em consideração nas estratégias de investimento; de outro, opõe-se a uma resolução “minimalista” que convida a direção de uma major do petróleo a refletir sobre o pós COP21. Claro, sempre é possível dizer que os dirigentes da BlackRock são hipócritas, ou que fazem a chamada “lavagem verde”, ou greenwashing: eles dizem à opinião pública o que ela quer ouvir em matéria ambiental, mas paralelamente praticam business as usual.
Há talvez uma parte disso, mas não há razão para subestimar o fato de que os capitalistas se colocam, de fato, perguntas quanto à atitude a adotar no contexto da crise climática.
Há três coisas para analisar, aqui. Primeiro, a lógica do curto e do longo prazo entraram em conflito. O capital financeiro tem uma tendência congênita ao curto-prazismo, a buscar lucros imediatos. As instituições que permitiriam disciplinar esse curto-prazismo em matéria ambiental ainda não foram inventadas, e portanto o curto prazo venceu. Mas no passado, para sair de outras crises – como a dos anos 1930, por exemplo — o capitalismo soube perfeitamente disciplinar-se, ou ser disciplinado pelo Estado. Não há razão para pensar que será incapaz desta vez. Mas para isso são necessárias novas instituições.
Em segundo lugar, o relatório BlackRock tem o mérito de enviar um sinal às corporações. “O limite ambiental vai tornar-se mais premente depois da COP21. Se querem que a gente invista em seu negócio no futuro, reflita sobre os seus efeitos sobre a rentabilidade e tome as medidas que se impõem. Caso contrário, não lhe confiaremos nosso dinheiro”, é a mensagem enviada pela BlackRock.
Finalmente, esses fundos de investimento investem paralelamente em setores da economia que sofrem os efeitos das mudanças climáticas. Se um fundo de investimento possui ações de uma seguradora, tipo Allianz ou Axa, ele vê a curva de remuneração paga aos segurados subir como uma flecha depois de várias décadas, devido ao aumento das catástrofes naturais. Tem, portanto, um interesse objetivo na existência de menos catástrofes naturais, e portanto em reduzir as emissões de gases de efeito estufa das empresas em que investe, em outros lugares.
Voltemos a Gorz. Quando o capitalismo assimilar a pressão ambiental, diz Gorz, ele o fará em seu próprio interesse, e não no interesse das populações. Há a ecologia “deles”, a dos capitalistas, e há a “nossa”, das populações. Mas o que distingue a economia deles da nossa? A resposta de Gorz é muito estimulante, ela esboça um programa de trabalho político que devemos elaborar coletivamente.
Segundo Gorz, a divisa da sociedade capitalista é a seguinte: Aquilo que é bom para todos não vale nada. Você só será respeitável se for “melhor” do que outros. A esse slogan capitalista é preciso opor um outro, uma divisa ecológica: Só é digno de você aquilo que é bom para todos. Só merece ser produzido o que não favorece nem diminui ninguém.
Capitalismo: interesse privado versus o bem comum - Imagem: Istockphoto
O que distingue, para Gorz, “a ecologia deles da nossa” é a concepção de necessidade humana que sustenta cada uma. Na sociedade capitalista, a escolha daquilo que um indivíduo necessita para viver uma “boa vida” é da alçada do próprio indivíduo — ou seja, em última instância é do mercado, pois a vontade individual frequentemente não pode muita coisa diante do poder de persuasão do mercado. E a lógica do mercado é a da diferença: eu não sou respeitável a não ser que seja “melhor” que os outros. Claro, essa discussão é enganosa, pois o mercado promete a mesma “diferença” a milhões de indivíduos, isso que tende, em última instância, a homogeneizar tudo, e estabelecer “vidas programadas”, como diz Gorz.
Para pensar nossas necessidades fora da lógica do mercado, para romper com as subjetividades consumistas, é preciso opor a ele uma força de poder equivalente. Essa força não pode ser outra além da deliberação coletiva, a democracia, uma democracia radical. Às necessidades criadas artificialmente pelo mercado, é preciso opor necessidades coletivamente discutidas e articuladas: “Só é digno de você aquilo que é bom para todos”. A partir disso, trata-se – e isso é o mais difícil – de colocar-se de acordo sobre aquilo que é “bom para todos” — algo que só aparece por meio da deliberação coletiva.
A questão que Gorz não aborda, e da qual deveríamos nos ocupar nos anos que virão é: em quais tipos de coletivos, em quais “conselhos cidadãos” as necessidades “boas para todos” — aí incluído o meio ambiente — poderiam ser colocadas em discussão? Aqui é preciso inspirar-se nos “grupos de reflexão” feministas dos anos 1970. Nesses grupos, discutiam-se os aspectos mais íntimos da vida, pensando-os em sua ligação com a política. Esses grupos permitiram que as mulheres saíssem do isolamento, discutissem a opressão de que eram vítimas, e também tomassem consciência de sua força quando se organizavam.
Colocar-se de acordo sobre necessidades “autênticas”, que escapem à falsa diferença prometida pelo mercado e que sejam ecologicamente duráveis, poderia ser algo a fazer em coletivos do mesmo tipo. Combatendo o consumismo de que somos todos vítimas em níveis diversos, esses coletivos poderiam também pronunciar-se sobre o tipo e a quantidade de bens produzidos, tal como faziam, antes, os conselhos de trabalhadores. Este é talvez um dos futuros caminhos da radicalização da democracia, e também da superação do capitalismo.


Tradução: Inês Castilho
Notas

[1] Sobre isso, ver Razmig Keucheyan, La nature est un champ de bataille. Essai d’écologie politique, Paris, editora Découverte, 2014, cap. 2.
[2] Disponível no endereço: https://www.blackrock.com/investing/literature/whitepaper/bii-climate-change-2016-us.pdf
[3] Ver Financial Times, 6 de setembro de 2016.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017


"Superimperialismo" anuncia catástrofes

JOSÉ ARBEX JR.


"Superimperialismo" anuncia catástrofes
O capital quer impor a adoção do TPP, Tafta e Tisa, acordos de total liberalização do comércio de bens e serviços, com consequências trágicas para os trabalhadores acorde a juventude de todo o mundo; o Brasil de Temer - Serra já anunciou sua adesão
Por José Arbex Jr.
Imagine um mundo governado por uma coalizão de algumas dezenas de megacorporações com poder para impor suas próprias regras sobre fluxos de bens, pessoas e capitais ao redor do planeta e definir as normas para a produção e exploração de produtos fundamentais à vida e às sociedades. Nesse mundo, fica vetada qualquer lei, aprovada por qualquer parlamento, que implique redução nos lucros das corporações (por exemplo: restrições ao uso de substâncias químicas para a exploração de matérias-primas; limitação da jornada de trabalho; medidas de proteção ao trabalhador no exercício de suas funções etc.).
É o “superimperialismo”, o mundo dos sonhos do capital. Não se trata, aqui, de uma “distopia”, de alguma obra de ficção sobre como funcionará o planeta, no futuro. Não. Esse mundo já é real, embora ainda não plenamente realizado. Está em processo acelerado de construção. Seus contornos são visíveis, e sua estrutura é anunciada por uma sopa de letrinhas: TPP, Tafta e Tisa, acordos de total liberalização de comércio e de serviços que, juntos, somam cerca de 80% das trocas mundiais. Comparado com aquilo que os acordos preconizam, a Alca – projeto que assombrou a América Latina na primeira década do século, mas derrotado pelo movimento hemisférico de resistência – soa mais como uma brincadeira de criança.
A péssima notícia é a de que a resistência está enfraquecida pela crise da própria esquerda. E, em contrapartida, o Brasil de Michel Temer e José Serra aderiu ao Tisa, em junho, embarcando com tudo rumo à catástrofe.
"Sopa de letrinhas" mortal
TPP é a sigla, em inglês, de Parceria Transpacífico. É uma expansão do Acordo de Parceria Econômica Estratégica Transpacífico, inicialmente assinado por Brunei, Chile, Nova Zelândia e Singapura, em 2005. A partir de 2008, Austrália, Canadá, Japão, Malásia, México, Peru, Estados Unidos e Vietnã também aderiram ao processo de negociações, cujo objetivo é extinguir todos os obstáculos ao comércio entre os signatários (traduzindo: trata-se de permitir que as corporações adotem práticas que aumentem ao máximo os seus lucros, sem qualquer inibição de natureza jurídica, institucional, social ou política). A etapa de formulação dos termos do acordo, que terão que ser submetidos aos parlamentos dos países-membros, para ratificação, foi concluída em 5 de outubro de 2015.
Tafta é a sigla de Acordo de Livre Comércio Transatlântico, arquitetado por bancos estadunidenses e europeus, as corporações vinculadas ao agronegócio e as maiores empresas dos dois lados do Atlântico. As negociações, secretas, foram iniciadas em julho de 2013.Como no caso do TPP, os bancos pressionam pela total desregulamentação de todas as práticas especulativas, incluindo aquelas que visam impedir que as instituições financeiras joguem com o dinheiro depositado por milhões de trabalhadores – práticas que estão na base da catástrofe que eclodiu em 2007.
"Os capitães da indústria querem a abolição de leis trabalhistas e de quaisquer garantias para os trabalhadores e jovens. Querem a regressão para níveis de exploração do trabalho verificados durante a Revolução Industrial e denunciados por Karl Marx e Friedrich Engels"
O agronegócio exige o fim das medidas de proteção ambiental e segurança alimentar, transformando o planeta num imenso campo de experimentos destinados a aumentar os lucros, mesmo que isso implique acelerar o desastre ambiental e aumentar a fome e a subnutrição no mundo. Finalmente, os capitães da indústria querem a abolição de leis trabalhistas e de quaisquer garantias para os trabalhadores e jovens. Querem a regressão para níveis de exploração do trabalho verificados durante a Revolução Industrial e denunciados por Karl Marx e Friedrich Engels.
O presidente estadunidense Barack Obama foi o maior impulsionador do processo de negociação dos acordos. Trata-se, para ele – e para sua fiel escudeira Hillary Clinton – de criar a moldura estrutural de um ultrabaliberalismo capaz de garantir às megacorporações a capacidade de redefinir a nova “cara” do capital após a catástrofe de 2007, da qual o sistema não se recuperou e não dá sinais de que algum dia possa fazê-lo. Para as megacorporações, torna-se, mais do que nunca, imperioso derrubar quaisquer obstáculos legais, jurídicos e políticos à lógica da acumulação desenfreada – a mesma que faz com que as 62 famílias mais ricas do planeta tenham tanto dinheiro quanto a metade mais pobre da humanidade.
Desse ponto de vista, há pelo menos uma grande diferença entre o TPP e o Tafta: no primeiro caso, as negociações são feitas entre os Estados Unidos e países que estão na periferia do sistema, exceto pelo Japão, ao passo que no segundo as cartas são jogadas por economias centrais, incluindo Alemanha, França e Grã-Bretanha (agora como potência separada da União Europeia). O maior equilíbrio entre as forças faz com que a conclusão de acordos seja muito mais trabalhosa e difícil no caso do Tafta, como mostra, por exemplo, o conflito de interesses entre os produtores rurais alemães e franceses, de um lado, e os estadunidenses, de outro.
Capítulo Onze
Apesar de as negociações do TPP e Tafta transcorrerem em ambientes secretos – o que, por si só, já é um absurdo –, os “vazamentos” via WikiLeaks e a prática no âmbito de outros acordos já dão uma boa ideia do que se pode esperar. Apenas a título de mero exemplo, basta considerar os efeitos do sinistro Capítulo onze do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, lançado em 1994, agregando Estados Unidos, Canadá e México), analisado pela ativista canadense Maude Barlow:
“É um capítulo que permite a uma corporação processar um governo de outro país. O Canadá, por exemplo, proibiu a Esso (estadunidense) de usar determinada toxina na gasolina, com o argumento de que era tóxica para as crianças. Se a gasolina fosse feita por empresa canadense, a proibição teria valido. Mas, pelo acordo do Nafta, a Esso, uma empresa estrangeira, pode processar o país e pedir indenização, sob a alegação de que os seus lucros foram afetados por mudanças na lei. A Esso processou o Canadá. O governo não só voltou atrás como deu US$ 20 milhões para a empresa e escreveu uma carta pedindo desculpas.”
O caso do México, também integrante do Nafta, onde o recurso ao Capítulo onze tornou-se rotina, é ainda muito mais trágico. Duas décadas após a adesão à aliança, todos os resultados são desastrosos para os trabalhadores. De acordo com os dados coligidos pelo CEPR (Center for Economic and Policy Research), o México ocupava o 18º lugar, entre vinte países da América Latina no que tange ao crescimento do PIB real per capita (PPC). Nas duas décadas, entre 1994 e 2014, o crescimento do PPC foi de 18,6%, isto é, cerca de metade da taxa de crescimento médio alcançada pelo resto da América Latina. A taxa de pobreza do México, em 2012, de 52,3%, era quase idêntica a de 1994, ao passo que o salário real (ajustado pela inflação) aumentou apenas 2,3%, ao longo de dezoito anos. O
Nafta destruiu o emprego agrícola e a agricultura familiar mexicana, graças à política de importação do milho e de produtos subsidiados dos Estados Unidos. Entre 1991-2007, houve uma perda líquida de 1,9 milhão de postos de trabalho no campo. Como consequência, aumentou em 79% a taxa de emigração para os Estados Unidos. O número de filhos de mexicanos nascidos no país vizinho mais do que duplicou, passando de 4,5 milhões em 1990 para 9,4 milhões em 2000, atingindo um pico de 12,6 milhões em 2009. Esta é a origem da atual “crise migratória”.
A cereja do bolo

A concretização do TPP e do Tafta transformaria a União Europeia e boa parte da Ásia num “imenso Nafta”, tendo os Estados Unidos como polo central de poder. A “cereja do bolo” desse processo é o Tisa, sigla de Acordo sobre o Comércio de Serviços, cujas negociações, também secretas, foram iniciadas em 2013, agregando inicialmente 51 países: Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, União Europeia (representando seus 28 países-membros, entre os quais a Grã-Bretanha), Hong Kong, Islândia, Israel, Japão, Liechtenstein, Ilhas Maurício, México, Nova Zelândia, Noruega, Paquistão, Panamá, Paraguai, Peru, Coreia do Sul, Suíça, Taiwan, Turquia e Estados Unidos, com a posterior adesão do Brasil (em junho) e, aparentemente, também da Argentina (oficialmente desmentida por sua chancelaria, em julho).
Novamente: as negociações eram e ainda são secretas. Só se tornaram conhecidas porque, em junho de 2015, houve um vazamento, via WikiLeaks, de dezessete documentos centrais, incluindo onze capítulos ainda em debate. Os signatários se comprometem a manter os termos secretos durante cinco anos, mesmo após a conclusão dos acordos. Do que se conhece até agora, o Tisa, à semelhança do previsto pelo TPP e Tafta, implicará a completa liberalização (isto é, abertura total ao processo de privatizações e entrada do capital estrangeiro) de todos os serviços, o que inclui saúde, educação, transporte aéreo e marítimo, comércio pela Internet, investimentos financeiros, fornecimento de projetos de engenharia e planos arquitetônicos, abastecimento de água e infraestrutura básica etc.
O conjunto dos itens negociados no âmbito do Tisa engloba cerca de 80% do PIB dos Estados Unidos. Também como no caso dos outros acordos, a adesão ao Tisa implica a renúncia, pelos países-membros, aos mecanismos de controle da economia nacional, com a adoção de normas inspiradas pelo Capítulo onze do Nafta, porém ainda mais draconianas. O acordo prevê, por exemplo, que se determinado setor da economia nacional for privatizado, nunca mais poderá ser reestatizado, mesmo nos casos em que o capital privado mostrar-se incapaz de substituir com eficácia o serviço público.
Claro que a adesão ao acordo terá que ser aprovada pelos parlamentos nacionais, e isso não será um processo tranquilo. Claro que haverá resistência, como ocorreu no caso da Alca. Exatamente por essa razão, a proposta de adesão não será apresentada de forma abrupta, como um raio no céu azul: os governos nacionais, até como resultado da derrota que sofreram no caso da Alca, irão gradualmente adequando suas legislações, com a adoção de “pacotes”, “planos econômicos” e medidas administrativas às concepções ultraliberalizantes que inspiram os acordos. No final do processo, o defunto já estará devidamente embalado, antes mesmo do atestado de óbito ser lavrado.
O governo Temer oferece um bom exemplo dessa estratégia. Pouco antes de proclamar a adesão do Brasil ao processo de negociações do Tisa, o governo decretou a Medida Provisória 727 (Programa de Parceria de Investimentos), que abre uma imensa avenida para um programa de privatizações sem limites, redigido em total consonância com os termos previstos pelo acordo. As propostas subsequentes de reformas da Justiça Trabalhista, da Previdência, das leis que regulamentam as ações da Petrobrás e outras, bem como a perspectiva de esvaziamento do Mercosul, agora visto como entrave ao comércio brasileiro, fazem pleno sentido quando analisadas à luz do Tisa. E mais ainda, quando se considera que a adesão do Brasil enfraquece os Brics, que, até agora, se apresenta como um polo alternativo de alianças estratégicas entre governos não submetidos ao garrote vil de Washington.
Há resistêcias, pero...
A grande marcha rumo ao superimperialismo enfrenta resistências, é claro. Nos Estados Unidos, a candidatura do senador democrata Bernie Sanders à presidência, fortemente marcada pela denúncia ao TPP, angariou o apoio militante de 8 milhões de ativistas, principalmente jovens, basicamente, os mesmos que participam dos movimentos contra a globalização do capital, como o Occupy Wall Street. Para os trabalhadores e a juventude estadunidense, a conclusão dos acordos significará mais desemprego e miséria, pois as corporações, em busca da maximização dos lucros, simplesmente deixarão o país para explorar mão de obra muito mais barata nas periferias do sistema, além de contarem com uma legislação totalmente hostil aos sindicatos e aos direitos trabalhistas.
Na atual disputa presidencial estadunidense, a aprovação ou não do TPP pelo Congresso é um dos principais divisores de águas entre os vários candidatos. É frontalmente atacado pelo candidato republicano Donald Trump, e envergonhadamente criticado até pela democrata Hillary Clinton, que desde sempre defendeu o plano como um “padrão-ouro” entre os acordos comerciais. Denunciada por Sanders como uma das arquitetas do TPP, Hillary agora faz “críticas”, em busca dos votos de milhões de trabalhadores.
Movimentos como o Podemos (Espanha) e Syriza (Grécia), ou, ainda, a resistência oferecida pelos movimentos sociais e pela grande base do Partido dos Trabalhadores no Brasil também são exemplos de articulações que, com graus distintos de combatividade, capacidade de organização e consciência de classe, expressam a vontade política de derrotar o capital.
"Os maiores obstáculos ao superimperialismo não são oriundos da esquerda, mas sim da direita xenófoba, racista e ultranacionalista. O Brexit, ruptura de Londres com a União Europeia, é apenas a parte mais visível desse processo"
Entretanto, os maiores obstáculos ao superimperialismo não são oriundos da esquerda, mas sim da direita xenófoba, racista e ultranacionalista. O Brexit, ruptura de Londres com a União Europeia, é apenas a parte mais visível desse processo, que também se manifesta com força na França (Frente Nacional de Le Pen, o partido que mais cresce nas pesquisas), na Áustria (onde o Partido da Liberdade, neonazista, perdeu a presidência do país, em maio, por uma diferença de apenas 0,6% dos votos, e conseguiu anular o pleito), na Polônia (Lei e Justiça), na Suécia (Partido Democrata), na Hungria (Fidesz e Jobbik), na Bulgária (Ataka), na Ucrânia (Svoboda).
São movimentos que refletem, de forma distorcida, o medo, os ódios e frustrações do trabalhador demitido ou o que viu o seu salário ser drasticamente reduzido, o produtor rural cuja renda mal dá para alimentar a família, o aposentado que recebe os benefícios cada vez mais tarde na vida e tem que continuar trabalhando para pagar as contas no final do mês, o provinciano que vê com desconfiança a chegada dos estrangeiros, imigrantes e refugiados “que vêm ao nosso país roubar o nosso emprego”. São os mesmos sentimentos que também produziram o “efeito Trump”, com suas promessas de deportar 11 milhões de mexicanos, construir um muro entre os dois países e banir a entrada de islâmicos.
O estado de confusão, perplexidade e paralisação que hoje afeta a esquerda mundial – claro que em situações diferenciadas em cada país – agrava a sensação de impotência e falta de perspectivas para uma humanidade dividida entre duas perspectivas desastrosas: a do superimperialismo, de um lado, e o esgarçamento do que ainda resta da comunidade das nações, com as multiplicações de grandes e pequenos Adolfs, de outro. Em síntese, o prognóstico feito por Marx, socialismo ou barbárie, torna-se um diagnóstico. No Brasil, o governo golpista de Temer soma-se, alegremente, aos protagonistas do desastre, ao passo que a esquerda, apeada do Planalto, parece não se ter ainda dado conta da gravidade da crise. Os ataques aos trabalhadores e jovens, já anunciados, estão apenas no começo.

  José Arbex Jr. é jornalista e professor da PUC-SP
Este artigo foi transcrito de Caros Amigos http://www.carosamigos.com.br

domingo, 28 de agosto de 2016


quarta-feira, 8 de abril de 2015


A meritocracia na raiz do conservadorismo da nossa classe média






POR QUE A CLASSE MÉDIA É REACIONÁRIA?
Charge política
O texto é longo, porém delicioso, para ser lido de uma só tacada, até perder o fôlego. O mais provável, caso seja nosso visitante assíduo, é que você não se enquadre nesta análise sobre o conservadorismo da classe média brasileira. Mas, certamente, irá lembrar de muitos familiares que costumam azedar os almoços de domingo e de certos amigos ou conhecidos que enchem o saco na mesa de um bar.
O ENIGMA DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
Por Renato Santos de Souza *
A primeira vez que ouvi Marilena Chauí bradar contra a classe média, chamá-la de fascista, violenta e ignorante, tive a reação que provavelmente a maioria teve: fiquei perplexo e tendi a rejeitar a tese quase impulsivamente.
Afinal, além de pertencer a ela, aprendi a saudar a classe média. Não dá para pensar em um país menos desigual sem uma classe média forte: igualdade na miséria seria retrocesso, na riqueza seria impossível.
Então, o engrossamento da classe média tem sido visto como sinal de desenvolvimento do país, de redução das desigualdades, de equilíbrio da pirâmide social, ou mais, de uma positiva mobilidade social, em que muitos têm ascendido na vida a partir da base.
A classe média seria como que um ponto de convergência conveniente para uma sociedade mais igualitária. Para a esquerda, sobretudo, ela indicaria uma espécie de relação capital-trabalho com menos exploração.
Distância entre ricos e pobres
Então, eu, que bebi da racionalidade desde as primeiras gotas de leite materno, como afirmou certa vez um filósofo, não comprei a tese assim, facilmente. Não sem uma razão. E a Marilena não me ofereceu esta razão.
Ela identificou algo, um fenômeno, o reacionarismo da classe média brasileira, mas não desvendou o sentido do fenômeno. Descreveu “O QUE” estava acontecendo, mas não nos ofereceu o “PORQUE”.
Por que logo a classe média? Não seria mais razoável afirmar que as elites é que são o “atraso de vida” do Brasil, como sempre foi dito? Mais, ela fala da classe média brasileira, não da classe média de maneira geral, não como categoria social.
Então, para ela, a identificação deste fenômeno não tem uma fundamentação eminentemente filosófica ou sociológica, e sim empírica: é fruto da sua observação, sobretudo da classe média paulistana.
E por que a classe média brasileira e não a classe média em geral? Estas indagações me perturbavam, e eu ficava reticente com as afirmações de dona Marilena.
Charge política
Com o passar do tempo, porém, observando muitos representantes da classe média próximos de mim (coisa fácil, pois faço parte dela), bem como a postura desta mesma classe nas manifestações de junho deste ano, comecei lentamente a dar razão à filósofa.
A classe média parece mesmo reacionária, talvez não toda, mas grande parte dela. Mas ainda me perguntava “por que” a classe média, e “por que” a brasileira? Havia um elo perdido neste fenômeno, algo a ser explicado, um sentido a ser desvendado.
Então adveio aquela abominável reação de grande parte da categoria médica – justamente uma categoria profissional com vocação para classe média – ao Programa Mais Médicos, e me sugeriu uma resposta.
Aqueles episódios me ajudaram a desvendar a espuma. Mas não sem antes uma boa pergunta!
Como pode uma categoria profissional pensar e agir assim, de forma tão unificada, num país tão plural e tão cheio de nuanças intelectuais e políticas como o nosso?
Estudantes de medicina e médicos parecem exibir um padrão de pensamento e ação muito coesos e com desvios mínimos quando se trata da sua profissão, algo que não se vê em outros segmentos profissionais.
Isto não pode ser explicado apenas pelo que se convencionou chamar de “corporativismo”. Afinal, outras categorias profissionais também tem potencial para o corporativismo, e não o são, ao menos não da mesma forma.
Então deveria haver outra interpretação para isto.
Radiografia de dinheiro
Bem, naqueles episódios do Mais Médicos, apesar de toda a argumentação pretensamente responsável das entidades médicas buscando salvaguardar a saúde pública, o que me parecia sustentar tal coesão era uma defesa do mérito, do mérito de ser médico no Brasil.
Então, este pensamento único provavelmente fora forjado pelas longas provações por que passa um estudante de medicina até se tornar um profissional: passar no vestibular mais concorrido do Brasil, fazer o curso mais longo, um dos mais difíceis, que tem mais aulas práticas e exigências de estrutura, e que está entre os mais caros do país.
É um feito se formar médico no Brasil, e talvez por isto esta formação, mais do que qualquer outra, seja uma celebração do mérito. Sendo assim, supõe-se, não se pode aceitar que qualquer um que não demonstre ter tido os mesmos méritos, desfrute das mesmas prerrogativas que os profissionais formados aqui.
Então, aquela reação episódica, e a meu ver descabida, da categoria médica, incompreensível até para o resto da classe média, era, na verdade, um brado pela meritocracia.
A minha resposta, então, ao enigma da classe média brasileira aqui colocado, começava a se desvelar: é que boa parte dela é reacionária porque é meritocrática; ou seja, a meritocracia está na base de sua ideologia conservadora.
Charge política
Assim, boa parte da classe média pensa da seguinte forma:
. é contra as cotas nas universidades, pois a etnia ou a condição social não são critérios de mérito;
. é contra o bolsa-família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um demérito desestimula o esforço produtivo;
. quer mais prisões e penas mais duras porque meritocracia também significa o contrário, pagar caro pela falta de mérito;
. reclama do pagamento de impostos porque o dinheiro ganho com o próprio suor não pode ser apropriado por um Governo que não produz, muito menos ser distribuído em serviços para quem não é produtivo e não gera impostos.
. é contra os políticos porque em uma sociedade racional, a técnica, e não a política, deveria ser a base de todas as decisões: então, deveríamos ter bons gestores e não políticos.
Tudo uma questão de mérito.
Charge política
Mas por que a classe média seria mais meritocrática que as outras?
Bem, creio que isto tem a ver com a história das políticas públicas no Brasil. Nós nunca tivemos um verdadeiro Estado do Bem Estar Social por aqui, como o europeu, que forjou uma classe média a partir de políticas de garantias públicas.
O nosso Estado no máximo oferecia oportunidades, vagas em universidades públicas no curso de medicina, por exemplo, mas o estudante tinha que enfrentar 90 candidatos por vaga para ingressar.
O mesmo vale para a classe média empresarial, para os profissionais liberais etc. Para estes, a burocracia do Estado foi sempre um empecilho, nunca uma aliada.
Mesmo a classe média estatal atual, formada por funcionários públicos, é geralmente concursada, portanto, atingiu sua posição de forma meritocrática.
Então, a classe média brasileira se constituiu por mérito próprio, e como não tem patrimônio ou grandes empresas para deixar de herança para que seus filhos vivam de renda ou de lucro, deixa para eles o estudo e uma boa formação profissional, para que possam fazer carreira também por méritos próprios.
Isto forjou o ethos meritocrático da nossa classe média.
Isca para atrair desempregados
Esta situação é bem diferente na Europa e nos EUA, por exemplo.
Boa parte da classe média europeia se formou ou se sustenta das políticas de bem estar social dos seus países, estas mesmas que entraram em colapso com a atual crise econômica e tem gerado convulsões sociais em vários deles; por lá, eles vão para as ruas exatamente para defender políticas anti-meritocráticas.
E a classe média americana, bem, esta convive de forma quase dramática com as ambiguidades de um país que é ao mesmo tempo das oportunidades e das incertezas; ela sabe que apenas o mérito não sustenta a sua posição, portanto, não tem muitos motivos para ser meritocrática.
Se a classe média adoecer nos EUA, vai perder o seu patrimônio pagando por serviços privados de saúde pela absoluta falta de um sistema público que a suporte.
Se advém uma crise econômica como a de 2008, que independe do mérito individual, a classe média perde suas casas financiadas e vai dormir dentro de seus automóveis, como se via à época.
Então, no mundo dos ianques, o mérito não dá segurança social alguma.
Vale quanto pesa
As classes brasileiras alta e baixa (os nossos ricos e pobres) também não são meritocráticas.
A classe alta é patrimonialista; um filho de rico herda bens, empresas e dinheiro, não precisa fazer sua vida pelo mérito próprio, portanto, ser meritocrata seria um contrassenso; ao contrário, sua defesa tem que ser dos privilégios que o dinheiro pode comprar, do direito à propriedade privada e da livre iniciativa.
Além disso, boa parte da elite brasileira tem consciência de que depende do Estado e que, em muitos casos, fez fortuna com favorecimentos estatais; então, antes de ser contra os governos e a política, e de se intitular apolítica, ela busca é forjar alianças no meio político.
Para a classe pobre o mérito nunca foi solução; ela vive travada pela falta de oportunidades, de condições ou pelo limitado potencial individual. Assim, ser meritocrata implicaria não só assumir que o seu insucesso é fruto da falta de mérito pessoal, como também relegar apenas para si a responsabilidade pela superação da sua condição.
E ela sabe que não existem soluções pela via do mérito individual para as dezenas de milhões de brasileiros que vivem em condições de pobreza, e que seguramente dependem das políticas públicas para melhorar de vida.
Então, nem pobres nem ricos tem razões para serem meritocratas.
Charge política
A meritocracia é uma forma de justificação das posições sociais de poder com base no merecimento, normalmente calcado em valências individuais, como inteligência, habilidade e esforço.
Supostamente, portanto, uma sociedade meritocrática se sustentaria na ética do merecimento, algo aceitável para os nossos padrões morais.
Aliás, todos nós educamos nossos filhos e tentamos agir no dia a dia com base na valorização do mérito. Nós valorizamos o esforço e a responsabilidade, educamos nossas crianças para serem independentes, para fazerem por merecer suas conquistas, motivamo-as para o estudo, para terem uma carreira honrosa e digna, para buscarem por méritos próprios o seu lugar na sociedade.
Então, o que há de errado com a meritocracia, como pode ela tornar alguém reacionário?
Bem, como o mérito está fundado em valências individuais, ele serve para apreciações individuais e não sociais. A menos que se pense, é claro, que uma sociedade seja apenas um agregado de pessoas.
Então, uma coisa é a valorização do mérito como princípio educativo e formativo individual, e como juízo de conduta pessoal, outra bem diferente é tê-lo como plano de governo, como fundamento ético de uma organização social.
Neste plano é que se situa a meritocracia, como um fundamento de organização coletiva, e aí é que ela se torna reacionária e perversa.
Charge - Classe Média
Vou gastar as últimas linhas deste texto para oferecer algumas razões para isto, para mostrar porquê a meritocracia é um fundamento perverso de organização social.
1- A meritocracia propõe construir uma ordem social baseada nas diferenças de predicados pessoais (habilidade, conhecimento, competência, etc.) e não em valores sociais universais (direito à vida, justiça, liberdade, solidariedade, etc.). Então, uma sociedade meritocrática pode atentar contra estes valores, ou pode obstruir o acesso de muitos a direitos fundamentais.
2- A meritocracia exacerba o individualismo e a intolerância social, supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as responsabilidades por seus sucessos e fracassos.
3- A meritocracia esvazia o espaço público, o espaço de construção social das ordens coletivas, e tende a desprezar a atividade política, transformando-a em uma espécie de excrescência disfuncional da sociedade, uma atividade sem legitimidade para a criação destas ordens coletivas.
Supondo uma sociedade isenta de jogos de interesse e de ambiguidades de valor, prevê uma ordem social que siga apenas a racionalidade técnica do merecimento e do desempenho, e não a racionalidade política das disputas, das conversações, das negociações, dos acordos, das coalisões e/ou das concertações, algo improvável em uma sociedade democrática e pluralista.
Lobo em pele de cordeiro
4- A meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável “ética do merecimento”, uma perversa “ética do desempenho”.
Numa sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada por pessoas que tem não só características diferentes mas também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes.
Mário Quintana merecia estar na ABL, mas não teve desempenho para tal. O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos achem que não merecessem.
Quintana, pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem ter tido que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem amealhou fortuna com a literatura foi o Coelho. Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho de mercado.
O José, aquele menino nota 10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 (tema de reportagem da ZH) merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado neste caso).
Na música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre merecimento e desempenho de mercado é abismal. Então, neste mundo em que vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham juntos, e talvez raramente convirjam.
Mas a meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo, não pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho supondo-se que ele seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser.
Desta forma, no mundo da meritocracia – que mais deveria se chamar “desempenhocracia” – se confunde merecimento com desempenho, com larga vantagem para este último como medida de mérito.
Charge política
5- A meritocracia escamoteia as reais operações de poder.
Como avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a certas posições de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação como os meios que levam a bons desempenhos são moldados por relações de poder; e o são decisivamente. Seria ingênuo supor o contrário.
Assim, os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no país são pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e científico.
Bons desempenhos no mercado literário são produzidos não só por uma boa literatura, mas por grandes investimentos em marketing; grandes sucessos no meio musical são conseguidos, dentre outras formas, “promovendo” as músicas nas rádios e em programas de televisão, e assim por diante.
Os poderes econômico e político, não raras vezes, estão por trás dos critérios avaliativos e dos “bons” desempenhos.
Charge política
Critérios avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme os interesses dominantes, e os interesses são a razão de ser das operações de poder; que, por sua vez, são a matéria prima de toda a atividade política.
Então, por trás da cortina de fumaça da meritocracia repousa toda a estrutura de poder da sociedade.
Até aí tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos, econômicos e sociais. O problema é que, sob o manto da suposta “objetividade” dos critérios de avaliação e desempenho, a meritocracia esconde estas relações de poder, sugerindo uma sociedade tecnicamente organizada e isenta da ingerência política.
Nada mais ilusório e nada mais perigoso, pois a pior política é aquela que despolitiza, e o pior poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é aquele que nega a si mesmo, que se oculta para não ser visto.
Poder financeiro global
6- A meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos “racionais”, e legitima pela razão toda a forma de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade).
A dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação.
7- A meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos resultados esperados.
Para a meritocracia não vale a pena ser o Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos. Vale mais a pena ser o Paulo Coelho e fazer uma literatura calibrada para vender.
Da mesma forma, muitos pais acham mais racional escolher a escola dos seus filhos não pelos fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo índice de aprovação no vestibular que ela apresenta. Estudantes geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas.
Cursos de pós-graduação e professores universitários não produzem conhecimentos e publicam artigos e livros para fazerem a diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e para ficarem bem ranqueados na CAPES e no CNPq.
Charge política
A meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações humanas.
Assim, em uma sociedade meritocrática, a racionalidade dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se ter um bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de dirigi-la para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.
8- Por fim, a meritocracia dilui toda a subjetividade e complexidade humana na ilusória e reducionista objetividade dos resultados e do desempenho.
O verso “cada um de nós é um universo” do Raul Seixas – pérola da concepção subjetiva e complexa do humano – é uma verdadeira aberração para a meritocracia: para ela, cada um de nós é apenas um ponto em uma escala de valor, e a posição e o valor que cada um ocupa nesta escala depende de processos objetivos de avaliação.
A posição e o valor de uma obra literária se mede pelo número de exemplares vendidos, de um aluno pela nota na prova, de uma escola pelo ranking no Ideb, de uma pessoa pelo sucesso profissional, pelo contracheque, de um curso de pós-graduação pela nota da CAPES, e assim por diante.
Embora a natureza humana seja subjetiva e complexa e suas interações sociais sejam intersubjetivas, na meritocracia não há espaço para a subjetividade nem para a complexidade e, sendo assim, lamentavelmente, há muito pouco espaço para o próprio ser humano.
Desta forma, a meritocracia destrói o espaço do humano na sociedade.
Distribuição de renda
Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que existem, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos.
Assim, embora eu tenda a concordar com a tese da Marilena Chauí sobre a classe média brasileira, proponho aqui uma troca de alvo.
Bradar contra a classe média, além de antipático pode parecer inútil, pois ninguém abandona a sua condição social apenas para escapar ao seu estereótipo.
Não se muda a posição política de alguém atacando a sua condição de classe, e sim os conceitos que fundamentam a sua ideologia.
Então, prefiro combater conceitos, neste caso, provavelmente o conceito mais arraigado na classe média brasileira, e que a faz ser o que é: a meritocracia.
Renato Santos de Souza é engenheiro agrônomo, mestre em Economia, doutor em Administração e professor da Universidade Federal de Santa Maria – RS. 


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