quinta-feira, 31 de março de 2011

Células tumorais expostas à "Quinta Sinfonia", de Beethoven, perderam tamanho ou morreram

RIO - Mesmo quem não costuma escutar música clássica já ouviu, numerosas vezes, o primeiro movimento da "Quinta Sinfonia" de Ludwig van Beethoven. O "pam-pam-pam-pam" que abre uma das mais famosas composições da História, descobriu-se agora, seria capaz de matar células tumorais - em testes de laboratório. Uma pesquisa do Programa de Oncobiologia da UFRJ expôs uma cultura de células MCF-7, ligadas ao câncer de mama, à meia hora da obra. Um em cada cinco delas morreu, numa experiência que abre um nova frente contra a doença, por meio de timbres e frequências.

A estratégia, que parece estranha à primeira vista, busca encontrar formas mais eficientes e menos tóxicas de combater o câncer: em vez de radioterapia, um dia seria possível pensar no uso de frequências sonoras. O estudo inovou ao usar a musicoterapia fora do tratamento de distúrbios emocionais.

- Esta terapia costuma ser adotada em doenças ligadas a problemas psicológicos, situações que envolvam um componente emocional. Mostramos que, além disso, a música produz um efeito direto sobre as células do nosso organismo - ressalta Márcia Capella, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, coordenadora do estudo.

Como as MCF-7 duplicam-se a cada 30 horas, Márcia esperou dois dias entre a sessão musical e o teste dos seus efeitos. Neste prazo, 20% da amostragem morreu. Entre as células sobreviventes, muitas perderam tamanho e granulosidade.

O resultado da pesquisa é enigmático até mesmo para Márcia. A composição "Atmosphères", do húngaro György Ligeti, provocou efeitos semelhantes àqueles registrados com Beethoven. Mas a "Sonata para 2 pianos em ré maior", de Wolfgang Amadeus Mozart, uma das mais populares em musicoterapia, não teve efeito.

- Foi estranho, porque esta sonata provoca algo conhecido como o "efeito Mozart", um aumento temporário do raciocínio espaço-temporal - pondera a pesquisadora. - Mas ficamos felizes com o resultado. Acreditávamos que as sinfonias provocariam apenas alterações metabólicas, não a morte de células cancerígenas.

"Atmosphères", diferentemente da "Quinta Sinfonia", é uma composição contemporânea, caracterizada pela ausência de uma linha melódica. Por que, então, duas músicas tão diferentes provocaram o mesmo efeito?

Aliada a uma equipe que inclui um professor da Escola de Música Villa-Lobos, Márcia, agora, procura esta resposta dividindo as músicas em partes. Pode ser que o efeito tenha vindo não do conjunto da obra, mas especificamente de um ritmo, um timbre ou intensidade.

Em abril, exposição a samba e funk
Quando conseguir identificar o que matou as células, o passo seguinte será a construção de uma sequência sonora especial para o tratamento de tumores. O caminho até esta melodia passará por outros gêneros musicais. A partir do mês que vem, os pesquisadores testarão o efeito do samba e do funk sobre as células tumorais.

- Ainda não sabemos que música e qual compositor vamos usar. A quantidade de combinações sonoras que podemos estudar é imensa - diz a pesquisadora.

Outra via de pesquisa é investigar se as sinfonias provocaram outro tipo de efeito no organismo. Por enquanto, apenas células renais e tumorais foram expostas à música. Só no segundo grupo foi registrada alguma alteração.

A pesquisa também possibilitou uma conclusão alheia às culturas de células. Como ficou provado que o efeito das músicas extrapola o componente emocional, é possível que haja uma diferença entre ouví-la com som ambiente ou fone de ouvido.

- Os resultados parciais sugerem que, com o fone de ouvido, estamos nos beneficiando dos efeitos emocionais e desprezando as consequências diretas, como estas observadas com o experimento - revela Márcia.
O Globo

quarta-feira, 30 de março de 2011

Agronegócio não garante segurança alimentar


Por Raquel Júnia, da Fiocruz*




No Assentamento Americana , no município de Grão Mogol, região norte de Minas Gerais, há de tudo um pouco - hortaliças, legumes, frutas, frutos típicos do bioma cerrado que cobre a região, criação de animais. De acordo com o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA NM), que presta assessoria aos assentados desde o início da ocupação da área, tecnicamente o que está sendo desenvolvido na região é o que se chama de sistemas agroflorestais e silvipastoris - ou seja, a conciliação de atividades agrícolas com a criação de animais e o extrativismo, de forma a garantir a preservação do bioma cerrado e também a produção de alimentos saudáveis. A situação dos moradores do assentamento Americana, onde, segundo eles próprios, "há de tudo um pouco", é um exemplo de como a agricultura familiar, sobretudo a prática agroecológica, podem garantir a segurança e a soberania alimentar.

Mas o que significa segurança alimentar? De acordo com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão consultivo ligado à Presidência da República, a concretização da segurança alimentar "consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis". Outra característica da produção em Americana que garante a segurança alimentar da população é que, além da diversidade de produtos e da convivência com o meio ambiente, os agricultores praticam a agroecologia - um conjunto de princípios que balizam a agricultura, entre eles a não utilização de agrotóxicos. A EPSJV participou da visita ao assentamento Americana durante a programação da Oficina Territorial de Diálogos e Convergências do Norte de Minas, que reuniu experiências dos agricultores familiares locais como etapa preparatória a um encontro nacional.

Na mesa dos brasileiros: resultados da agricultura familiar

De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), é a agricultura familiar a grande responsável pela alimentação da população brasileira, garantindo em torno de 70% do que é consumido. "É a agricultura familiar que produz feijão, arroz, leite, verdura, é a produção diversificada que consumimos todos os dias. Tem uma importância muito forte para a segurança alimentar e também para a soberania alimentar", afirma o secretário nacional de agricultura familiar do MDA Laudemir Muller. Ele diz que a produção da agricultura familiar tem crescido muito, acompanhando o consumo de alimentos, que também aumentou. Laudemir explica que a soberania alimentar também é garantida com este modelo de agricultura. "É a agricultura familiar que preserva as tradições, que tem uma produção diversificada, que mantêm a tradição das sementes. Então, na escolha do que nós comemos, a agricultura familiar é o grande bastião dessa diversidade, seja dos povos da floresta, do cerrado, dos grupos de mulheres", comenta.

Entretanto, dados do próprio Consea mostram que o agronegócio cresce mais do que a agricultura familiar e, de acordo os participantes da Oficina Territorial de Diálogos e Convergências do Norte de Minas , este modelo de produção tem ameaçado a segurança e a soberania alimentar do país por vários motivos. Entre os problemas do agronegócio estão a concentração de terras e a consequentemente a diminuição das áreas destinadas à agricultura familiar; a baixa diversidade de produção, pois há regiões inteiras com apenas uma espécie plantada - como as monoculturas de eucalipto, cana de açúcar e soja; e a utilização de tecnologias como a dos agrotóxicos e transgênicos, que apresentam um risco para a saúde.

Um relatório do Consea lançado no final de 2010, que avalia desde a Constituição de 1988 até a atualidade a segurança alimentar e nutricional e o direito humano à alimentação adequada no Brasil, apresenta dados que confirmam este problema. De acordo com o estudo, o ritmo de crescimento da produção agrícola destinada à exportação é muito maior do que para o consumo interno. "A área plantada dos grandes monocultivos avançou consideravelmente em relação à área ocupada pelas culturas de menor porte, mais comumente direcionadas ao abastecimento interno. Apenas quatro culturas de larga escala (milho, soja, cana e algodão) ocupavam, em 1990, quase o dobro da área total ocupada por outros 21 cultivos. Entre 1990 e 2009, a distância entre a área plantada dos monocultivos e estas mesmas 21 culturas aumentou 125%, sendo que a área plantada destas últimas retrocedeu em relação a 1990. A monocultura cresceu não só pela expansão da fronteira agrícola, mas também pela incorporação de áreas destinadas a outros cultivos", diz o documento.

O relatório também faz um alerta sobre o uso de agrotóxicos. "O pacote tecnológico aplicado nas monoculturas em franca expansão levou o Brasil a ser o maior mercado de agrotóxicos do mundo. Entre as culturas que mais os utilizam estão a soja, o milho, a cana, o algodão e os citros. Entre 2000 e 2007, a importação de agrotóxicos aumentou 207%. O Brasil concentra 84% das vendas de agrotóxicos da América Latina e existem 107 empresas com permissão para utilizar insumos banidos em diversos países. Os registros das intoxicações aumentaram na mesma proporção em que cresceram as vendas dos pesticidas no período 1992-2000. Mais de 50% dos produtores rurais que manuseiam estes produtos apresentam algum sinal de intoxicação", denuncia o Consea.

Para a presidente do Conselho Federal de Nutricionistas, Rosane Nascimento, não é necessário que o Brasil lance mão de práticas baseadas no uso de agrotóxicos e mudanças genéticas para alimentar a população. "Estamos cansados de saber que o Brasil produz alimento mais do que suficiente para alimentar a sua população e este tipo de artifício não é necessário. A lógica dessa utilização é a do capital em detrimento do respeito ao cidadão e do direito que ele tem de se alimentar com qualidade", protesta. Ela explica por que os transgênicos ameaçam a soberania alimentar. "O alimento transgênico foi modificado na sua genética e gerou uma dependência de um produto para ser produzido, então não é soberano porque irá depender de uma indústria de sementes para produzir aquele alimento, quando na verdade ele deve ser crioulo, natural daquela região, daquela localidade, respeitar os princípios da soberania", afirma.

Enquanto o MDA aposta na agricultura familiar e procura desenvolver políticas públicas para fortalecer esta atividade, segundo afirma o próprio ministério, outro ministério - o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), aposta no agronegócio. O MAPA confirma, por meio da assessoria de imprensa, o alto desempenho da agricultura para exportação no Brasil. "O Brasil alcançou recorde nas exportações brasileiras do agronegócio nos últimos 12 meses. O número chegou a US$ 78,439 bilhões, um valor 19,8% acima do exportado no mesmo período do ano passado (US$ 65,460 bilhões)", afirma o ministério. Segundo dados do MAPA, em janeiro de 2011, a exportação de carnes foi a mais lucrativa, seguida pelos produtos do complexo sucroalcooleiro (açúcar e álcool), produtos florestais (que incluem borracha, celulose e madeira), café e o complexo soja (farelo, óleo e grãos).

Questionado sobre o uso abusivo de agrotóxicos na agricultura brasileira, o MAPA responde: "O que podemos dizer é que em 2010, os fiscais federais agropecuários do Ministério da Agricultura analisaram 650 marcas de agrotóxicos, em 197 indústrias do país. Do total, 74 produtos apresentaram irregularidades, o que representou 428,9 toneladas apreendidas. O resultado aponta que 88,6% dos agrotóxicos estavam dentro dos padrões". E continua: "O papel do Ministério da Agricultura é assegurar que os agrotóxicos sejam produzidos por empresas registradas e entrem no mercado da forma que consta no registro. Fazemos a fiscalização para verificar, desde a qualidade química do produto até o processo de fabricação e rotulagem".

Já o MDA alerta que a monocultura de uma forma exagerada, com grandes proporções, pode trazer problemas. "O ministério tem trabalhado para apoiar e viabilizar, com políticas públicas, este modelo de agricultura familiar, que é um modelo diversificado. Nós não achamos interessante a monocultura, seja a grande monocultura ou a pequena monocultura. Para a nós a diversidade é muito importante. Para nós, o modelo mais adequado e mais necessário para o país é o da agricultura familiar", reforça Laudemir Muller. O secretário destaca também que é um entusiasta da agroecologia. "Nós sabemos que infelizmente o país está com este título (de maior consumidor de agrotóxicos do mundo), e isso é uma das conseqüências da expansão da monocultura em nosso país. É preciso apoiar firmemente quem quer produzir de uma forma agroecológica", diz.

Populações tradicionais e indígenas correm mais risco

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), as populações indígenas e quilombolas são as que mais sofrem com a insegurança alimentar e nutricional. O relatório elaborado pelo Consea critica a demora na demarcação das terras indígenas e quilombolas, o que prejudica o direito a alimentação adequada. "Verifica-se que a morosidade para a demarcação das terras indígenas tem impactado negativamente a realização do direito humano à alimentação adequada dos povos indígenas, desrespeitando a forte vinculação entre o acesso à terra e a preservação dos hábitos culturais e alimentares desses povos", diz o documento.

A secretária nacional de segurança alimentar e nutricional do MDS, Maya Takagi, afirma, por exemplo, que os índices de crianças com baixa estatura em relação à idade é maior nas comunidades indígenas e quilombolas, situação decorrente da quantidade insuficiente de alimentos. "Nesses grupos específicos ainda temos o problema da quantidade de alimentos. Mas nosso desafio é também o da qualidade, conseguir ofertar alimentos de maior qualidade, de forma que as famílias de modo geral possam se alimentar de produtos saudáveis e naturais. Então, temos ainda um problema duplo, com o problema da quantidade mais localizado por grupos e regiões", descreve.

Maya cita os dados presentes no próprio relatório do Consea, segundo o qual 6,7% da população brasileira de crianças abaixo de cinco anos sofre com problemas de insegurança alimentar. Indicadores, segundo ela, considerados aceitáveis internacionalmente. Entretanto, o problema se agrava quando o dado é analisado por região e por grupos. A região norte é a que apresenta mais risco com 14,8% da população infantil sofrendo insegurança alimentar, o índice é de 26% na população indígena, 15% entre os quilombolas e 15,9% entre as famílias mais pobres. No caso dos adultos, o déficit de peso brasileiro diminuiu: passou de 4,4% em 1989 para 1,8% em 2010. Maya considera que é necessário haver muitas políticas públicas para resolver a situação. "Regularização fundiária, acesso à terra, apoio para a produção, banco de sementes, assistência técnica, políticas de proteção social. Um conjunto grande de políticas", elenca.

11,2 milhões de pessoas com insegurança alimentar grave

O estudo do Consea mostra que os desafios para ser alcançada a segurança alimentar no Brasil ainda são grandes. "Em 2009, a proporção de domicílios com segurança alimentar foi estimada em 69,8%, com insegurança alimentar leve 18,7%, com insegurança alimentar moderada 6,5% e com insegurança alimentar grave 5,0%. Esta última situação atingia 11,2 milhões de pessoas".

O relatório também afirma que há diferenças na alimentação dos mais pobres e mais ricos. "Comparando-se a maior e menor faixa de rendimento, a participação dos alimentos é 1,5 vezes maior para carnes, 3 vezes maior para leite e derivados, quase 6 vezes maior para frutas e 3 vezes maior para verduras e legumes, entre os mais ricos. Além dessas diferenças, também ocorre maior consumo de condimentos, refeições prontas e bebidas alcoólicas à medida em que ocorre o crescimento da renda".

No assentamento Americana, onde não se pode dizer que as pessoas tenham alto poder aquisitivo, um almoço foi preparado pelos camponeses do local para receber os visitantes. Nas grandes panelas em cima do fogão à lenha, havia feijão andu - uma das quatro espécies de feijão produzidas no local - com farinha, arroz, carne de porco, mandioca e couve temperada com óleo de pequi. Para acompanhar, três tipos de suco de frutas e, de sobremesa, marmelada. De tudo o que foi servido, apenas o arroz não foi produzido na localidade. No entorno do assentamento, há muitas terras destinadas à monocultura do eucalipto. "Conseguimos avançar bastante e entendemos que para termos uma vida digna é preciso ter alimentação, educação e saúde", aposta Aparecido de Souza, assentado do local e diretor do Grupo Extrativista (do Cerrado, uma organização criada pelos moradores.

Para Rosane Nascimento, outro desafio é também garantir uma mudança no perfil de consumo de alimentos. "A pesquisa de orçamento familiar do IBGE corrobora uma tendência crescente do surgimento das doenças crônico-degenerativas, tais como diabetes, hipertensão, obesidade. São doenças causadas principalmente por uma má alimentação e estilos de vida não saudável. Com o crescimento econômico e uma possibilidade de promover o acesso a essa alimentação, temos uma classe que aumentou o acesso em termos de consumo mas isso não foi associado a uma boa escolha dos alimentos que estão indo para a sua mesa", analisa, destacando, entretanto, que o problema da obesidade está em todas as classes. A nutricionista acredita que deve haver políticas públicas que ataquem o problema.

Lúcio Moreira, também morador do assentamento Americana, diz que na comunidade já há uma conscientização quanto a isso. "Não trazemos mais tanto refrigerante e dizemos para as pessoas que muitas vezes elas consomem veneno quando compram no supermercado", diz.

*Publicado originalmente na edição 421 do Brasil de Fato: http://www.brasildefato.com.br/node/5977">http://www.brasildefato.com.br/node/5977
(Envolverde/Brasil de Fato)

segunda-feira, 28 de março de 2011

Carta aberta à Opinião Pública Nacional e Internacional

Carta aberta à Opinião Pública Nacional e Internacional

Venho mais uma vez manifestar-me publicamente em relação ao projeto do Governo Federal de construir a Usina Hidrelétrica Belo Monte cujas consequências irreversíveis atingirão especialmente os municípios paraenses de Altamira, Anapu, Brasil Novo, Porto de Moz, Senador José Porfírio, Vitória do Xingu e os povos indígenas da região.

Como Bispo do Xingu e presidente do Cimi, solicitei uma audiência com a Presidente Dilma Rousseff para apresentar-lhe, à viva voz, nossas preocupações, questionamentos e todos os motivos que corroboram nossa posição contra Belo Monte. Lamento profundamente não ter sido recebido.

Diferentemente do que foi solicitado, o Governo me propôs um encontro com o Ministro de Estado da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho. No entanto, o Senhor Ministro declarou na última quarta-feira, 16 de março, em Brasília, diante de mais de uma centena de lideranças sociais e eclesiais, participantes de um Simpósio Sobre Mudanças Climáticas que “há no governo uma convicção firmada e fundada que tem que haver Belo Monte, que é possível, que é viável… Então, eu não vou dizer prá Dilma não fazer Belo Monte, porque eu acho que Belo Monte vai ter que ser construída”.

Esse posicionamento evidencia mais uma vez que ao Governo só interessa comunicar-nos as decisões tomadas, negando-nos qualquer diálogo aberto e substancial. Assim, uma reunião com o Ministro de Estado Gilberto Carvalho não faz nenhum sentido, razão pela qual resolvi declinar do convite.

Nestes últimos anos não medimos esforços para estabelecer um canal de diálogo com o Governo brasileiro acerca deste projeto. Infelizmente, constatamos que esse almejado diálogo foi inviabilizado já desde o início. As duas audiências realizadas com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 19 de março e 22 de julho de 2009, não passaram de formalidades. Na segunda audiência, o ex-presidente nos prometeu que os representantes do setor energético, com brevidade, apresentariam uma resposta aos bem fundamentados questionamentos técnicos feitos à obra pelo Dr. Célio Bermann, professor do curso de pós-graduação em energia do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo. Essa resposta nunca foi dada, como também nunca foram levados em conta os argumentos técnicos contidos na Nota Pública do Painel de Especialistas, composto por 40 cientistas, pesquisadores e professores universitários.

Observamos, pelo contrário, na sequência a essas audiências, que técnicos do Ibama reclamaram estar sob pressão política para concluir com maior rapidez os seus pareceres e emitir a Licença Prévia para a construção da usina. Tais pressões políticas são de conhecimento público e motivaram, inclusive, a demissão de diversos diretores e presidentes do órgão ambiental oficial. Em seguida, foi concedida uma “Licença Específica”, não prevista na legislação ambiental brasileira, para a instalação do canteiro de obras.

No dia 8 de fevereiro de 2011, povos indígenas, ribeirinhos, pequenos agricultores e representantes de diversas organizações da sociedade realizaram uma manifestação pública em frente ao Palácio do Planalto. Na ocasião, foi entregue um abaixo-assinado contrário à obra, contendo mais de 600 mil assinaturas. Embora houvessem solicitado uma audiência com bastante antecedência, não foram recebidos pela Presidente. Conseguiram apenas entregar ao ministro substituto da Secretaria Geral da Presidência, Rogério Sottili, uma carta em que apontaram uma série de argumentos para justificar o posicionamento contrário à obra. O ministro prometeu mais uma vez o diálogo e considerou a carta “um relato que prezo, talvez um dos mais importantes da minha relação política no Governo (…) vou levar este relato, esta carta, este manifesto de vocês, os reclamos de vocês…”. Até o momento, nenhuma resposta!

As quatro audiências – realizadas em Altamira, Brasil Novo, Vitória do Xingu e Belém – não passaram de mero formalismo para chancelar decisões já tomadas pelo Governo e cumprir um protocolo. A maioria da população ameaçada não conseguiu se fazer presente. Pessoas contrárias à obra que conseguiram chegar aos locais das audiências não tiveram oportunidade real de participação e manifestação, devido ao descabido aparato bélico montado pela Polícia.

Até o presente momento, os índios não foram ouvidos. As “oitivas” indígenas não aconteceram. Algumas reuniões foram realizadas com o objetivo de informar os índios sobre a Usina. Os indígenas que fizeram constar em ata sua posição contrária à UHE Belo Monte foram tranquilizados por funcionários da Funai que as “oitivas” seriam realizadas posteriormente. Para surpresa de todos nós, as atas das reuniões informativas foram publicadas pelo Governo de maneira fraudulenta em um documento intitulado “Oitivas Indígenas”. Esse fato foi denunciado pelos indígenas que participaram das reuniões. Com base nestas denúncias, peticionamos à Procuradoria Geral da República investigação e tomada de providências cabíveis.

A tese defendida pelo Sr. Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), de que as aldeias indígenas não serão afetadas pela UHE Belo Monte, por não serem inundadas, é mera tentativa de confundir a opinião pública. Ocorrerá justamente o contrário: os habitantes, tanto nas aldeias como na margem do rio, ficarão praticamente sem água, em decorrência da redução do volume hídrico. Ora, esses povos vivem da pesca e da agricultura familiar e utilizam o rio para se locomover. Como chegarão a Altamira para fazer compras ou levar doentes, quando um paredão de 1.620 metros de comprimento e de 93 metros de altura for erguido diante deles?

Julgo fundamental esclarecer que não há nenhum estudo sobre o impacto que sofrerão os municípios à jusante, Senador José Porfírio e Porto de Moz, como também sobre a qualidade da água do reservatório a ser formado. Qual será o futuro de Altamira, com uma população atual de 105 mil habitantes, ao ser transformada numa península margeada por um lago podre e morto? Os atingidos pela barragem de Tucuruí tiveram que abandonar a região por causa de inúmeras pragas de mosquitos e doenças endêmicas. Mas os tecnocratas e políticos que vivem na capital federal, simplesmente menosprezam a possibilidade de que o mesmo venha a acontecer em Altamira.

Alertamos a sociedade nacional e internacional que Belo Monte está sendo alicerçada na ilegalidade e na negação de diálogo com as populações atingidas, correndo o risco de ser construída sob o império da força armada, a exemplo do que vem ocorrendo com a Transposição das águas do rio São Francisco, no nordeste do país.

O Governo Federal, no caso da construção da UHE Belo Monte, será diretamente responsável pela desgraça que desabará sobre a região do Xingu e sobre toda a Amazônia.

Por fim, declaramos que nenhuma “condicionante” será capaz de justificar a UHE Belo Monte. Jamais aceitaremos esse projeto de morte. Continuaremos a apoiar a luta dos povos do Xingu contra a construção desse “monumento à insanidade”.

Brasília, 25 de março de 2011

Dom Erwin Kräutler

Bispo do Xingu e Presidente do Cimi – Conselho Indigenista Missionário
Nota socializada pelo Cimi – Conselho Indigenista Missionário e publicada pelo EcoDebate, 28/03/2011

A realidade Paralela de Alex Andreev

Um dos expoentes do surrealismo contemporâneo,o russo Alex Andreev na série "Metronomicon" mostra o lado sombrio das grandes metrópoles que formam o que ele chama de realidade paralela.

Outros obras suas, porém, possuem um clima futurista e lembram até alguns cenários de "Avatar". Confiram algumas de suas obras




Outros trabalhos seus:
http://dementia.pt/o-surrealismo-de-alex-andreyev/

Alex Andreev

quinta-feira, 24 de março de 2011

Para impedir uma nova crise alimentar


Os países e regiões que enfrentam fome precisam de maior margem de manobra para proteger a produção local de alimentos, prevenir o dumping e estabilizar o abstgacimento. Parte desta margem para definir políticas é hoje minada pelas regras da Organização Mundial de Comércio. Os estoques de alimentos precisam ser vistos de novo como ferramentas essenciais, tanto para enfrentar emergências quanto para estabilizar os preços e o abastecimento, para os agricultores e os consumidores. A concentração fundiária precisa ser interrompida. O artigo é de Jim Harkness.
Jim Harkness - IATP (*)

Quando os preços globais dos alimentos atingiram um pico, entre 2007 e 2008, 100 milhões de pessoas entraram no contingente dos famintos, que ultrapassou pela primeira vez na História a marca de 1 bilhão de seres humanos. Agora, apenas dois anos depois, vivemos outra alta, e é provável que mais fome esteja à espreita.

A FAO, agência da ONU para Alimentos e Agricultura, acaba de publicar seu índice de preços de alimentos, relativo a janeiro de 2011. No caso de alguns produtos, ele chegou ao patamar mais alto (tanto em termos nominais quanto deflacionados) desde que a agência passou a acompanhar a variação das cotações, em 1990. Levantes populares relacionados a alimentos já começaram a ocorrer na Argélia. Enquanto a História se repete, e desenha-se a segunda grande crise de fome em dois anos, é decisivo aprendermos a lição da primeira onda, e enfrentarmos suas causas principais.

A segurança alimentar depende de tempo e mercados estáveis e previsíveis e de acesso a recursos. Tudo isso foi abalado perigosamente nas duas últimas décadas. Desde 1970, o aquecimento global causado pelo ser humano provocou o aumento dos eventos climáticos extremos em todo o mundo. Agricultores que costumavam enfrentar duas perdas de colheitas a cada década agora sofrem inundações, secas ou grandes pragas a cada dois ou três anos. Em 2010 e no início deste ano, alguns dos grandes produtores mundiais de alimentos - Argentina, Austrália, China, Paquistão e Rússia - viveram, todos, eventos climáticos que afetaram fortemente as colheitas.

A segunda fonte de instabilidade é um mercado cada vez mais caótico. Em nome do “livre” comércio, o governo dos Estados Unidos e o Banco Mundial passaram as últimas três décadas forçando a abertura dos mercados dos países pobres a importações baratas, que desorganizaram a produção. Em cruel ironia, os países pobres também foram pressionados a cortar o apoio a seus próprios agricultores e até a vender seus estoques de emergência, sob a lógica de que seria mais eficaz simplesmente adquirir comida no mercado internacional.

Em 2006, mais de dois terços das nações mais pobres dependiam de importações de alimentos. Então, veio a onda de desregulação financeira da década passada, que atraiu os especuladores para os mercados de commodities e criou fundos de índices que atrelaram, como nunca antes, os mercados de alimentos aos de petróleo e metais. Mas a “agregação”, “alavancagem” e demais os “instrumentos inovadores” que deveriam reduzir os riscos nestes mercados provocaram o efeito oposto. A consequência foi um mercado global de alimentos altamente volátil, em que fatores não relacionados com a produção e consumo reais de alimentos frequentemente determinam os preços.

Este duplo golpe global, de instabilidade climática e financeira, não atingiu a todos. A volatilidade é útil aos que atuam com muita força nos mercados. Muitas empresas de agrobusiness estão registrando lucros recordes agora - depois de já terem alcançado idêntico resultado durante a última crise. Houve um pico de concentração de propriedade. Vastas extensões de terras aráveis, nos países do Sul, têm sido compradas por investidores estrangeiros e convertidas em plantações não-alimentares - inclusive matérias-primas industriais e biocombustíveis.

Vale notar, também, que alguns países africanos não serão tão atingidos desta vez. Eles optaram por estimular a produção local, ao invés de confiar nos mercados globais. A maior parte dos agricultores pobres, contudo, luta contra situações hostis. Não é de admirar que a fome tenha se convertido numa nova norma.

Se de fato consideramos a desnutrição global algo inaceitável - e não uma oportunidade de negócios - é preciso fazer grandes mudanças. Quase todos no Banco Mundial, na ONU ou no G-20 reconhecem a necessidade de apoiar os pequenos agricultores, especialmente mulheres, nos países que enfrentam fome. Em termos globais, 70% da comida é produzida em imóveis de menos de dois hectares, conduzidos em grande parte por mulheres.

A ajuda ao desenvolvimento, assim como as políticas governamentais dos países do Sul, deveriam estar focadas em apoiar as conquistas de produtividade destes agricultores, e sua capacidade de enfrentar as crises. Ao invés de deixá-los impotentes diante das forças globais, deveriam incorporar a sabedoria dos sistemas de produção tradicionais, que, ao combinarem o melhor da ciência ecológica com o conhecimento tradicional dos agricultores, encorajam práticas que reduzem o uso de insumos caros, ampliam a produção e a renda dos trabalhadores. E a produção para atender as necessidades locais deve ter prioridade em relação às culturas de produtos exportáveis.

Há muito mais a fazer. Os países e regiões que enfrentam fome precisam de maior margem de manobra para proteger a produção local de alimentos, prevenir o dumping e estabilizar o abstgacimento. Parte desta margem para definir políticas é hoje minada pelas regras da Organização Mundial de Comércio.

Os estoques de alimentos precisam ser vistos de novo como ferramentas essenciais, tanto para enfrentar emergências quanto para estabilizar os preços e o abastecimento, para os agricultores e os consumidores. A concentração fundiária precisa ser interrompida. Tornou-se ainda mais importante apoiar a reforma agrária, que redistribuiu terra arável para os pequenos produtores que desejam produzir alimentos.

Os governos precisam implementar regras rigorosas para reduzir as operações financeiras especulativas com alimentos. Nos Estados Unidos, a reforma financeira conhecida como Dodd-Frank foi um bom começo, mas os lobistas de Wall Street estão agindo agressivamente para enfraquecê-la, em sua tramitação pelo Congresso.

A desestabilização da oferta de alimentos ocorrida na última década pode ser revertida. Mas isso só ocorrerá se aprendermos com o passado e apoiarmos medidas inovadoras para ampliar a estabilidade e a segurança dos agricultores, mercados e sistemas alimentares.

(*) Jim Harkness, professor de Sociologia do Desenvolvimento, é presidente do Instituto para Política Agrícola e de Comércio (IATP, na sigla em inglês), um centro de estudos sediado nos EUA, e voltado para o estudo de alternativas às políticas neoliberais.

Tradução: Antonio Martins (Outras Palavras)

segunda-feira, 21 de março de 2011

A mão (quase) invisível da contra-revolução


Por Nick Turse | Tradução: Rede Vila Vudu
Os homens que andavam pela rua pareciam homens comuns. Comuns, pelo menos, nesses dias de tumultos e protestos no Oriente Médio. Usavam tênis, calças jeans e camisetas de mangas compridas. Alguns exibiam a bandeira nacional. Muitos erguiam as mãos. Alguns exibiam dísticos de paz. Muitos cantavam “Em paz, em paz”.

À frente, os vídeos mostram, soldados com coletes à prova de bala sentados na calçada, à espera. Na véspera, as forças de segurança haviam forçado, com violência mortal, a dispersão dos manifestantes pró-democracia, expulsos da rotatória da Pérola na capital do Bahrain, Manama. À noite, os manifestantes voltaram, insistindo em fazer-se ouvir.

Ouve-se então, inconfundível, o crack-crack-crack de tiros, e os homens espalham-se. Muitos deles, mas não todos. Os vídeos mostram três que não conseguiram salvar-se. Um deles, em camisa azul clara e calças escuras recebeu, como se vê claramente, um tiro na cabeça. Nos instantes entre a câmera ir do corpo caído aos blindados e voltar, vê-se que se formou grande poça de sangue.

Mais tarde a organização Human Rights Watch informou que Redha Bu Hameed morreu instantaneamente, com uma bala na cabeça.

O incidente, do dia 18/2, foi um de uma série de atos de violência praticados pelas forças de segurança do Bahrain, que deixaram sete mortos e mais de 200 feridos no último mês. Jornalistas observaram que os manifestantes receberam tiros de balas revestidas de borracha e de festim, para intimidação, mas que também – como no caso do assassinato de Bu Hameed – de munição viva.

A bala que matou Bu Hameed foi paga pelos contribuintes norte-americanos e entregue às Forças de Defesa do Bahrain por militares norte-americanos. A relação que se manifesta nessa bala (e em muitas outras semelhantes) entre o Bahrain, país minúsculo, de maioria de muçulmanos xiitas governada por um rei sunita, e o Pentágono, é relação comprovadamente mais poderosa que todos os ideais democráticos norte-americanos e muito mais poderosa, também, que o presidente dos EUA.

Acompanhar a rota pela qual balas fabricadas nos EUA chegam às metralhadoras e fuzis do ditador do Bahrain, armas usadas para matar manifestantes pró-democracia, é boa oportunidade para começar a entender as sinistras relações que unem o Pentágono e muitos ditadores no mundo árabe. Se se segue essa rota, veem-se os modos pelos quais o Pentágono e aqueles países ricos em petróleo pressionaram a Casa Branca e a levaram a participar da repressão aos movimentos populares e democráticos que hoje varrem o grande Oriente Médio.

Balas e falcões linha-dura

Análise de documentos do Departamento da Defesa publicada em TomDispatch indica que, desde os anos 1990s, os EUA transferiram grande quantidade de material militar, de caminhões e aeronaves a peças de metralhadora e milhões de caixas de munição, para as forças de segurança do Bahrain.

Segundo dados da Agência de Cooperação para Segurança e Defesa [ing. Defense Security Cooperation Agency], braço do governo dos EUA que coordena vendas e transferência de equipamento militar para aliados, os EUA doaram ao Bahrain dúzias de itens da cota de “excesso” dos arsenais dos EUA de tanques, carros blindados para transporte de tropas e helicópteros armados. Os EUA também entregaram às Forças de Defesa do Bahrain milhares de pistolas calibre .38 e milhões de caixas de munição, desde as balas de mais alto calibre para canhões, até as menores, para pistolas e outras armas portáteis. Por exemplo, os EUA entregaram ao Bahrain balas calibre .50 – para rifles e metralhadoras – em quantidade suficiente para matar toda a população do reino (1.046.814, incluídos 517.368 estrangeiros, em 2008), um tiro por cabeça, quatro vezes. A Agência de Cooperação para Segurança e Defesa, procurada para esclarecer esses números, não respondeu a várias tentativas de contato.

Além desses presentes em armamento, munição e veículos de combate, o Pentágono, em ação coordenada com o Departamento da Defesa, também coordenou a venda ao Bahrain de itens e serviços de defesa no valor de mais de $386 milhões, nos anos 2007-9, os últimos três anos para os quais há registros. Esses negócios cobriram a compra-venda de inúmeras peças, de veículos a sistemas de armas. Só no último verão, por exemplo, o Pentágono anunciou contrato multimilionário com a empresa Sikorsky Aircraft para ‘personalizar’ nove helicópteros Black Hawk com as cores e dísticos da Força de Defesa do Bahrain.

“Os tiros vinham de um helicóptero”[1]

Dia 14/2, reprimindo com violência o protesto que não parava de crescer, as forças de segurança do Bahrain mataram um manifestante e feriram 25. Nos dias seguintes, de agitações incessantes, chegaram à Casa Branca notícias de que as tropas que sobrevoavam as ruas num helicóptero haviam atacado a tiros os manifestantes. (Autoridades do Bahrain desmentiram; disseram que as testemunhas haviam confundido as lentes de teleobjetiva das câmeras fotográficas, com armas.) O exército do Bahrain também abriu fogo contra ambulâncias que chegavam para recolher os feridos, e contra pessoas que se aglomeravam em torno dos feridos.

“Pedimos moderação do governo” – disse a secretária de Estado Hillary Clinton, no início dos ataques no Bahrain. “Exigimos a volta a um processo que levará a mudanças reais, significativas lá para o povo”. O presidente Obama falou ainda mais claramente sobre o estado de violência no Bahrain, na Líbia e no Iêmen: “Os EUA condenam o uso de violência por governos contra manifestantes pacíficos naqueles países e onde mais ocorra.”

Começaram a surgir notícias de que, nos termos de uma lei conhecida como “Emenda Leahy”, o governo estava revisando ativamente os programas de ajuda militar a várias unidades das forças de segurança do Bahrain, para definir os que seria cortados por violação a direitos humanos. “Há evidências agora de que houve abusos”, disse um veterano assessor do Congresso ao Wall Street Journal em resposta a vídeo que mostrava a violência policial e militar no Bahrain. “A questão é saber especificamente que unidades cometeram aqueles abusos e se algum item da assistência que damos a eles foram usados por essas unidades.”

Nas semanas subseqüentes, Washington suavizou muito visivelmente o tom. Segundo matéria recente de Julian Barnes e Adam Entous no Wall Street Journal, foi resultado de uma campanha de lobby dirigida aos altos oficiais no Pentágono e no não menos poderoso Departamento de Estado comandada por emissários do rei King Hamad bin Isa al-Khalifa do Bahrain e seus aliados no Oriente Médio. No final, o lobby árabe assegurou que, no que tenha a ver com o Bahrain, a Casa Branca não cogitaria de “mudança de regime”, como no Egito e na Tunísia, e adotaria uma estratégia de futura reforma política que alguns diplomatas chamam hoje de “alteração de regime”.

Os seis estados membros do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) são, além do Bahrain, o Kuwait, Omã, o Qatar, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, todos eles com extensas relações com o Pentágono. O CCG tratou de armar a Casa Branca, jogando com medos de que o Irã pudesse beneficiar-se, no caso de o Bahrain abraçar a democracia e que, com isso, se desestabilizaria toda a região de modo adverso ao que interessa às políticas de projeção de poder dos EUA. “Começando pelo Bahrain, todo o governo andou alguns passos na direção de dar mais peso à estabilidade do que ao governo da maioria”, nas palavras de funcionário dos EUA citado pelo Journal. “Todos entenderam que o Bahrain é importante demais para cair.”

Estranha frase, tão semelhante a “grande demais para falir”, que foi usada antes de o governo resgatar a gigante AIG de seguros e os grandes grupos financeiras como o Citigroup depois do derretimento econômico global de 2008. O Bahrain é, claro, uma minúscula ilha no Golfo Persa, mas é também o ninho da 5ª Frota Naval da Marinha dos EUA, equipamento bélico considerado crucialmente importante para o Pentágono na Região. É considerado via indispensável até a vizinha Arábia Saudita, posto de gasolina dos EUA no Golfo e, para Washington, importante demais para algum dia quebrar.

O relacionamento entre o Pentágono e os países do Conselho de Cooperação do Golfo tem sido pavimentado de vários modos sobre os quais pouco se fala na imprensa norte-americana. A ajuda militar é um desses fatores. Só o Bahrain levou para casa, ano passado, $20 milhões em assistência militar dos EUA. Em área vizinha, há o raramente comentado casamento triangular entre empresas contratadas pela Defesa, os estados do Golfo e o Pentágono. As seis nações do Golfo (acrescidas da Jordânia, parceira regional) devem gastar $70 bilhões em armamento e equipamentos, em 2010, e outros $80 bilhões por ano, até 2015. Dado que o Pentágono busca onde amarrar a viabilidade financeira dos fabricantes de armas em tempos de dificuldades econômicas, os bolsos fundos dos estados do Golfo ganharam especial importância.

A partir de outubro passado, o Pentágono começou suas operações secretas de lobby, junto a analistas de finanças e grandes investidores institucionais, promovendo os fabricantes de armas e outros de seus contratados, dos quais faz compras, para garantir que se mantenham financeiramente viáveis, considerados os cortes previstos nos gastos do Departamento de Defesa. Os Estados do Golfo são outra avenida que leva ao mesmo objetivo. Diz-se que o Pentágono é um “monopsônio”, único comprador de várias empresas gigantes, mas não é completa verdade.

O Pentágono é também a única via pela qual seus parceiros árabes no Golfo conseguem comprar o mais avançado equipamento bélico que há no mundo. Atuando como intermediário, o Pentágono garante que os fabricantes de armas dos quais depende continuem financeiramente estáveis. Um negócio de $60 bilhões com a Arábia Saudita, por exemplo, no outono passada, garantiu que Boeing, Lockheed-Martin e outras megaempresas que têm contratos com o Pentágono continuem saudáveis e lucrativas, mesmo se os gastos do Pentágono forem cortados ou se começarem a encolher, nos anos futuros. A dependência do Pentágono, do dinheiro do Golfo, contudo, tem um preço. O lobby árabe não encontrou dificuldades para explicar o quanto rapidamente aquela fonte secaria, se, sem mais nem menos, começasse a acontecer por lá cascatas de revoluções democráticas.

Aspecto ainda mais significativo do relacionamento entre os estados do Golfo e o Departamento de Defesa é o sinistro arquipélago de bases que há no Oriente Médio. Apesar de o Pentágono ocultar, mais ou menos completamente, conforme consiga, a existência de várias daquelas bases, e apesar de os países do Golfo em muitos casos ocultarem das populações locais a existência daquelas bases, os EUA mantêm bases militares na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes Unidos, em Omã, no Qatar, no Kuwait e, claro, também no Bahrain – que abriga a 5ª Frota, cujas 30 naves de guerra, entre as quais dois porta-aviões, patrulham o Golfo Persa, o Mar da Arábia e o Mar Vermelho.

Rosquinhas sim, democracia não

Semana passada, manifestantes contra a monarquia do Bahrain reuniram-se à frente da embaixada em Manama, exibindo cartazes em que se lia “Parem de apoiar ditadores”, “Liberdade ou morte” e “O povo quer democracia”. Entre os manifestantes havia muitas mulheres.

Ludovic Hood, funcionário da embaixada dos EUA, segundo notícias divulgadas, ofereceu uma caixa de rosquinhas aos manifestantes. “Esses doces são boa ideia, mas esperamos que se traduzam em ações” – disse Mohammed Hassan, que usava o turbante branco dos clérigos; Zeinab al-Khawaja, uma das mulheres que liderava os protestos, disse a Al Jazeera que tinha esperança de que os EUA não se envolveriam nas lutas no Bahrain. “Queremos que os EUA não se metam. Nós podemos derrubar o regime”, disse ela.

Mas os EUA já estão profundamente envolvidos. Por um lado, dão rosquinhas. Por outro, helicópteros armados, carros blindados para transporte de tropas e milhões de balas – equipamentos que desempenharam papel importante nos recentes violentos confrontos.

Em meio à violência, a organização Human Rights Watch conclamou os EUA e outros de seus doadores internacionais a suspender imediatamente qualquer assistência militar ao Bahrain. O governo britânico anunciou que havia começado a revisar suas exportações militares, e a França suspendeu exportações de qualquer equipamento militar para o reino. O governo Obama, embora tenha iniciado revisão semelhante, não continuou, O dinheiro, que fala mais alto na política doméstica, também fala mais alto na política exterior. A campanha de lobby comandada pelo Pentágono e parceiros no Oriente Médio muito provavelmente derrotará qualquer movimento na direção de cortar exportações de armas, o que deixará os EUA, mais uma vez, em território seu velho conhecido – apoiando ditadores e governos antidemocráticos, que governam contra o próprio povo.

“Mesmo sem reexaminar todos os eventos das últimas três semanas, creio que a história acabará por registrar que, em todos os momentos na situação do Egito, nós sempre estivemos do lado certo da história” – o presidente Obama explicou depois de Hosni Mubarak, ditador do Egito, ter sido derrubado –, frase presunçosa, para dizer o mínimo, se se veem as mensagens ambíguas de seu governo, até que o fim do governo de Mubarak fosse fato consumado. Pois, em relação ao Bahrain, ninguém ouvirá, sequer, esse desanimado apoio a algum tipo de mudança.

Ano passado, a Marinha dos EUA e o governo do Bahrain organizaram imensa cerimônia para o lançamento de um projeto de construção numa área de marina, 70 acres, em Manama. Prevista para estar concluído em 2015, o projeto prevê novas instalações de porto, local para acampamento de tropas, prédios de administração, locais de alimentação, um centro recreativo, dentre outras amenidades, ao preço anunciado de $580 milhões. “O investimento no projeto da marina dará melhores condições de vida aos nossos marinheiros e parceiros da coalizão, por muitos anos futuros” – disse o tenente comandante Keith Benson, à época, do contingente da Marinha do Bahrain. “Esse projeto significa a continuidade de nossas relações e de nossa mútua confiança, da amizade e da camaradagem que ligam as forças navais dos EUA e do Bahrain.”

De fato, esse tipo de “camaradagem” parece mais poderosa que o compromisso do presidente dos EUA, de apoiar mudanças pacíficas, democráticas, naquela região rica em petróleo. Depois da deposição de Mubarak, Obama disse que “a força moral da não violência, não o terrorismo, não a matança, mas a não violência, a força moral, que tensiona hoje o arco da história em direção à justiça, mais uma vez”. O Pentágono, segundo o Wall Street Journal, decidiu tensionar também o arco da história em outra direção – contra os manifestantes pró-democracia no Bahrain. As íntimas relações que mantém com mercadores de armas e ditaduras árabes, costuradas por grandes negócios com empresas fornecedoras e bases militares semiclandestinas explicam por quê.

Funcionários da Casa Branca dizem que seu apoio à monarquia do Bahrain não é incondicional e que contam com que haverá reformas reais. Que reformas serão, depende, claro, do que o Pentágono decida. Não por acaso, semana passada, um alto funcionário dos EUA visitou o Bahrain. Não era diplomata. Não fez qualquer contato com a oposição. (Nem, que fosse, para uma foto encomendada oferecendo rosquinhas.) O secretário da Defesa Robert Gates viajou para falar como rei Hamad bin Isa al-Khalifa [na foto deste post, os dois, num encontro anterior, em 2008] e com o príncipe coroado Salman bin Hamad al-Khalifa para, disse o secretário de imprensa do Pentágono, Geoff Morrell, “reafirmar nosso apoio”.

“Estou convencido de que ambos estão seriamente comprometidos com andar em frente e promover reformas” – disse Gates, depois. Simultaneamente, reergueu o espectro do Irã. Afirmando que o regime iraniano estaria fomentando os protestos, Gates disse que “há provas claras de que o processo está sendo manipulado – sobretudo no Bahrain –, de que os iranianos procuram meios para explorar e criar problemas.”

O secretário da Defesa expressou sua simpatia por os governantes do Bahrain, que estariam “entre a espada e a montanha” e outros funcionários disseram que as manifestações de rua impossibilitavam que se entabulasse melhor diálogo com grupos moderados da oposição. “Acho que o governo precisa que todos parem, respirem fundo e abram espaço para que algum diálogo prossiga” – disse ele. No final, disse aos jornalistas que a perspectiva de os EUA manterem bases militares no Bahrain eram sólidas. “Não vejo qualquer sinal de que nossa presença venha a ser afetada, nem no curto nem no médio prazo” – acrescentou Gates.

Imediatamente depois da visita de Gates, o Conselho de Cooperação do Golfo, ostensivamente, enviou tropas sauditas para o Bahrain, para por fim aos protestos. Puxado pelo cabresto pelo Pentágono e parceiros no lobby árabe, o governo Obama jogou todo o seu peso do lado das forças antidemocráticas do Bahrain. Já não há nem o recurso de alguma ambigüidade retórica, para impedir que se veja de que lado da história, de fato, está.


[1] “Ouviam-se manifestantes que gritavam “Estão atirando! Tiros! Tiros!”. Os militares estavam atirando. Muitos tiros – de prédios em volta, de um helicóptero e da rua em frente aos manifestantes” (New York Times, 8/2/2011, em http://www.nytimes.com/2011/02/19/world/middleeast/19bahrain.html?_r=3&src=me ).

Leia também: A Líbia e a Esquerda(http://www.outraspalavras.net/2011/03/20/a-libia-e-a-esquerda/).



Soja usa 5 milhões de litros de agrotóxico e chega ao leite materno em MT


O município de Lucas do Rio Verde, localizado ao norte do Estado, é caracterizado como segundo maior produtor de grãos do Estado. Em 2009 cultivou 410 mil hectares de soja e milho.Para isso, utilizou nada mais nada menos que cerca de 5 milhões de litros de agrotóxicos. Bom para a indústria, bom para os negócios, péssimo para a saúde da população. Principalmente de mães, cujos filhos estão em idade de amamentação. Uma pesquisa revelou a presença de agrotóxico no leite materno das gestantes que residem no município. Isso mesmo: agrotóxico no leite materno.

“Após a aplicação, parte desses produtos atinge a peste alvo, enquanto que o restante pode ser disperso no ambiente e acumular-se no organismo humano” – explica Danielly Cristina de Andrade Palma, mestranda em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso. Nas amostras de leite coletadas de 62 nutrizes, foram encontradas pelo menos um tipo de agrotóxico. A coleta foi feita entre a 3ª e a 8ª semana após o parto. Entre as variáveis estudadas, ter tido aborto foi uma variável que se manteve associada à presença de três agrotóxicos.

O estudo é uma alerta para os moradores da região, pois os resultados podem ser oriundos da exposição ocupacional, ambiental, alimentar do processo produtivo da agricultura que expôs a população a 114,37 litros de agrotóxicos por habitante na safra agrícola de 2009/2010..

“Por suas características fisiológicas e vulnerabilidade à exposição a agentes químicos presentes no ambiente, este leite ao ser consumido pelos recém-nascidos pode provocar agravos à saúde” – diz a pesquisadora.

De acordo com o secretário de Agricultura e Meio Ambiente de Lucas do Rio Verde, Edu Pascosk, o que aconteceu no município foi um fato esporádico que ocorreu devido a uma pulverização de uma aeronave que passou dentro do perímetro urbano. “todas as providências já foram tomadas e os agricultores estão seguindo normalmente a legislação federal”, informou.

O município é considerado o segundo maior produtor de grãos do Estado. E para o agronegócio, o lucro pode estar acima da vida. Diante dos fatos, parece que o mesmo governo que faz campanhas para incentivar as mulheres a amamentar, financia o agronegócio que produz a comida envenenada, contaminando o leite da maioria das mães.
Thais Tomie
Redação 24 Horas News
Imagem do blog FUNVERDE_Fundação Verde que tem mais informações sobre o uso de agrotóxicos.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Mudança na matriz energética requer transformações nos padrões atuais de produção e consumo



Por Redação IHU




O sistema energético com base em hidrelétricas é insustentável e prejudicial às populações ribeirinhas, afirma o professor Heitor Scalambrini Costa, da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), em entrevista por e-mail, à IHU On-Line. De acordo com o professor, as hidrelétricas previstas no rio Madeira e Xingu são desnecessárias para atender às necessidades elétricas do país. Em sua percepção, elas foram projetadas com o objetivo de “beneficiar as indústrias do setor eletrointensivo, como as empresas produtoras de ferro, celulose e alumínio primário, que são grandes consumidoras (e desperdiçadoras) de energia”.

Costa enfatiza que, para construir um modelo energético sustentável, é necessário mudar os modos de produção e consumo da sociedade. Para ele, mudanças na matriz energética, que conduzam ao bem- estar das pessoas, “devem levar em conta uma profunda transformação nos padrões atuais de produção/consumo, no estilo de vida” da população. Nesse sentido, ele propõe mudanças no conceito de crescimento econômico, e ressalta que as fontes de energia renováveis, além de ajudarem a combater os impactos ambientais, ajudariam a diminuir a pobreza e os problemas socioeconômicos do País.

Costa é graduado em Física pelo Instituto de Física Gleb Wattaghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Energia Solar, pelo Instituto de Energia Nuclear da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Energia, pela Commissariat à I’Energie Atomique-CEA, Centre d’Estudes de Cadarache et Laboratorie de Photoelectricité Faculte Saint- Jerôme/Aix-Marseille III, França. Atualmente, coordena os projetos da ONG Centro de Estudos e Projetos Naper Solar e o Núcleo de Apoio a Projetos de Energias Renováveis - NAPER da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

IHU On-Line - Como o senhor avalia a matriz energética nacional?

Heitor Scalambrini Costa - O Brasil tem 45% da sua matriz energética baseada em fontes renováveis, particularmente para a geração de energia elétrica e potencialmente nos combustíveis líquidos para transporte, a partir de agrocombustíveis. Por outro lado, há uma absurda e brutal emissão de carbono no uso da terra. Basicamente, em função das transformações no uso da terra na região amazônica, onde o desmatamento e queimadas são usados para abrir campos agriculturáveis e pastagens.

Sem dúvida, nos encaminhamos para o fim da era do petróleo, e nos defrontamos com o grande desafio, que é combater as causas das mudanças climáticas, principalmente substituindo os derivados do petróleo por combustíveis renováveis. Estamos em um período de transição e de incorporação de novas fontes energéticas na vida das pessoas e das nações. Discutir, portanto, uma mudança na matriz energética que realmente busque preservar a vida e o bem-estar dos indivíduos no planeta precisa levar em conta uma profunda transformação nos padrões atuais de produção/consumo, no estilo de vida, no conceito de desenvolvimento vigente e na própria organização de nossa sociedade. Entendo que, para concretizar uma estratégia em bases sustentáveis, seria necessário investir na diversidade e na complementaridade das fontes energéticas, portanto nas alternativas renováveis como a energia eólica, solar térmica, fotovoltaica, marés, ondas, biomassa, pequenas quedas de água (PCH´s ). Portanto, discutir a matriz energética implica, em primeiro lugar, refletir a serviço de quem estará esta nova matriz e levar em conta quem se beneficiará ou qual propósito servirá, ou seja: energia para quê e para quem?

IHU On-Line - Investindo na construção de novas hidrelétricas, o Brasil estará produzindo energia para quem?

Heitor Scalambrini Costa - O Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica (PDEE) 2006-2015, divulgado pelo Governo Federal, tem pouco apreço pela busca da eficiência energética e do uso racional de energia. Foi elaborado para beneficiar as indústrias do setor eletro-intensivo, como as empresas produtoras de ferro, pasta de celulose e alumínio primário, que são grandes consumidoras (e desperdiçadoras) de energia, concentrando em três megaprojetos (as usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antonio - no Rio Madeira, em Rondônia, a de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará e a usina nuclear de Angra III), que causarão grandes impactos sociais e ambientais e têm uma chance razoável de dar errado. Empreendimentos estes rechaçados pelos movimentos sociais e pela sociedade brasileira há anos, devido aos impactos ambientais que provocarão.

O governo não deu muita importância à adoção de novas matrizes de energia renovável no País. As energias renováveis são relegadas no PDEE, enquanto deveriam ser encaradas como a grande solução para a questão energética. O Brasil já é capaz de produzir em quantidade energia solar térmica, solar fotovoltaica, eólica ou biomassa, entre outras, e só não o faz por falta de vontade política do governo. O governo segue desconsiderando essa tendência internacional apesar do País possuir potencial para suprir totalmente a demanda nacional atual e também para fornecer eletricidade a locais remotos que não a possuem ou que utilizam outras fontes, como a geração a diesel ou a gás.

Ao desprezar as fontes renováveis, o País acaba deixando de economizar energia. Essas fontes poderiam também resolver problemas atuais do setor, como o pico de consumo causado por chuveiros elétricos e que pode ser reduzido utilizando a energia solar térmica, beneficiando a todos, inclusive às concessionárias. Assim a demanda poderia ser mais balanceada e o fator de carga elevado.

IHU On-Line - Num momento em que tanto se discute a questão ambiental e o aquecimento global, por que viabilizar grandiosos projetos de usinas hidrelétricas no Rio Madeira e no Xingu, por exemplo, se já está comprovado que grandes hidrelétricas geram impactos ambientais?

Heitor Scalambrini Costa - Os planos e estratégias de expansão da oferta de energia elétrica feito pela Empresa de Pesquisa Energética – EPE pressupõe a continuidade de construção de grandes barragens e a prevalência da opção hidrelétrica para assegurar 4/5 da oferta, deixando a termeletricidade (gás natural, carvão mineral, derivados de petróleo e nuclear) os 20% restantes.
Para a elaboração deste cenário, é considerada a construção de grandes hidrelétricas na região Norte do País, a conclusão de Angra III e a construção de outras novas nucleoelétricas, enquanto que a inserção da energia solar e eólica na matriz energética nacional se mantém de forma incipiente. A energia elétrica obtida a partir do potencial hidráulico de um rio, através da construção de uma barragem, com a conseqüente formação de um reservatório, tem se revelado no cenário nacional e internacional insustentável. São identificados problemas físico-químico-biológicos decorrentes da implantação e operação de uma usina hidrelétrica e de sua interação com as características ambientais do local de construção (por exemplo, alteração do regime hidrológico, assoreamento, emissões de gases estufa a partir da decomposição orgânica no reservatório, entre outros), além dos aspectos sociais, particularmente com relação às populações ribeirinhas atingidas pelas obras (formação do reservatório), invariavelmente desconsideradas, diante dos deslocamentos destas populações.

Hidrelétricas desnecessárias

As hidrelétricas previstas no rio Madeira e Xingu são desnecessárias para atender as necessidades elétricas do País. Foram projetadas para beneficiar as indústrias do setor eletro-intensivo, como as empresas produtoras de ferro, celulose e alumínio primário, que são grandes consumidoras (e desperdiçadoras) de energia, além de obviamente as grandes empreiteiras (fonte de “eterna” corrupção).

Existem outras alternativas de oferta de energia elétrica sem a necessidade destas obras tão renegadas pela sociedade civil brasileira. Alternativas como a repotenciação (modernização) das hidrelétricas já existentes, melhorar a eficiência e conservação de energia, utilizar o aquecimento de água com energia solar para substituição dos chuveiros elétricos, dentre outras medidas, seriam suficientes para ofertar a energia elétrica necessária ao País, sem a necessidade de realizar estas grandes obras. Portanto, o Brasil não tem necessidade de construir as usinas hidrelétricas no Rio Madeira e no Xingu para atingir as metas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Estas decisões, referentes à construção de usinas de geração de eletricidade, têm sido expostas diante de um suposto aumento dos riscos de déficit de energia, alimentadas pela síndrome do apagão. Parece-me mais inteligente buscar formas de aumentar a eficiência e a conservação de energia e de encontrar, na diversidade das fontes renováveis, as múltiplas saídas para os problemas energéticos do país.

IHU On-Line - O senhor afirma que o tratamento dado à questão energética no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) foi decepcionante. Por quê? De que maneira o PAC poderia contribuir para o efetivo desenvolvimento do País, no que se refere à energia elétrica?

Heitor Scalambrini Costa - Pode se afirmar que o tratamento dado à questão energética no PAC foi decepcionante e frustrante para aqueles que almejam um desenvolvimento em nosso país mais igualitário, menos excludente e sustentável ambientalmente. Estamos na contramão da história, pois os mais recentes estudos do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática da Organização das Nações Unidas têm apontado como o pior vilão das mudanças climáticas o uso dos combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral) causadores do efeito estufa. E, lamentavelmente, são estes combustíveis que receberam os maiores recursos destinados pelo PAC.

Com uma previsão de aporte de recursos da ordem de R$ 274,8 bilhões até 2010, a área de infra-estrutura energética teve a maior fatia do bolo de investimentos. O plano mostra o viés conservador do governo por investir em combustíveis fósseis (maiores causadores do aquecimento global). A rubrica petróleo e gás levou R$ 179 bilhões, enquanto para o desenvolvimento de fontes renováveis de energia serão destinadas “migalhas” da ordem de R$ 17,4 bilhões. O setor elétrico, por sua vez, receberá R$ 65,9 bilhões para investimento em geração de energia e R$ 12,5 bilhões para investimentos em transmissão e distribuição.

Apesar do setor elétrico receber menos recursos que o setor petróleo e gás, o PAC atendeu às reivindicações dos empresários do setor elétrico (leia-se as grandes empresas transnacionais), beneficiando-as com mudanças nas regras de empréstimos concedidos pelo BNDES, que aumentaram as facilidades para os empresários do setor. Os prazos de pagamento foram estendidos de 14 para 20 anos e os prazos de carência aumentados de seis meses para um ano. Além disso, o financiamento pode chegar a até 80% do valor total do empreendimento. Também há outras facilidades, como a redução do valor das garantias dos projetos de construção de usinas hidrelétricas e a diminuição das exigências de previsão de fluxo de caixa para financiamentos no setor de energia. O governo, com essas “facilidades”, espera viabilizar projetos de usinas hidrelétricas de Jirau (3.300 MW) e Santo Antonio (3.150 MW), no Rio Madeira (barragem de 217 km), em Rondônia e de Belo Monte (5.500 MW), e no Rio Xingu, no Pará (barragem de 440 km).

Antes que o Brasil se renda ao apelo da energia nuclear (ambientalmente incorreta por causa dos riscos de acidentes e da produção de resíduos radioativos), ou continue lutando contra a sociedade civil para aprovar a construção de novas hidrelétricas e termelétricas, parece mais inteligente buscar formas de aumentar a eficiência e a conservação de energia, e de encontrar, na diversidade das fontes renováveis, as múltiplas saídas para os problemas energéticos do país.

IHU On-Line - Discutir as mudanças na matriz energética brasileira implica em discutir também mudanças no sistema de produção e consumo? Como o senhor relaciona esses aspectos?

Heitor Scalambrini Costa - Um modelo sustentável só será possível a partir da mudança dos modos de produção e de consumo da sociedade. É a razão capitalista com base no consumismo, no militarismo, e na da lógica de acumulação do capital que está levando o nosso planeta - e os seres vivos que o habitam - a uma situação catastrófica do ponto de vista do meio ambiente, das condições de sobrevivência da vida humana e da vida em geral.

O paradigma do crescimento econômico deve e precisa ser profundamente alterado. Precisamos nos adequar à velocidade dos acontecimentos, pois o caos climático e suas conseqüências se transformarão, em poucos anos, num fator de contestação global do capitalismo como jamais houve na história. Para estar à altura dos acontecimentos, uma boa idéia é começar a deixar de lado um conceito de crescimento econômico que nos foi imposto pelo próprio capitalismo.

A questão central é como vamos mudar o sistema de produção. Na medida em que se muda a produção, se mudará o consumo. A produção comanda e obriga o consumo. Se há preocupação em mudar a questão ambiental, é preciso se pensar em mudar o sistema de produção, o modelo atual da civilização ocidental industrializada. Temos que combater aqueles que parecem obedecer a uma mentalidade desenvolvimentista ainda calcada na visão do “mais e maior” e que ignora as dimensões socioambientais do “crescimento infinito”.

O fato é que jamais haverá, sob o signo do capitalismo, a “salvação ambiental”. Por isso, a luta socioambiental é hoje o instrumento mais importante para a superação do capitalismo antes que o capitalismo acabe com as condições para que a humanidade exista nesse Planeta.

IHU On-Line - Como o senhor percebe a criação das Pequenas Centrais Hidrelétricas enquanto alternativa para o funcionamento efetivo da energia elétrica no País?

Heitor Scalambrini Costa - O Brasil tem características geográficas e hidrológicas que favorecem o emprego da energia hidroelétrica. No País, existe um importante potencial, identificado através das PCH´s, estimado em 9.800 MW, considerando usinas com até 30 MW de potência instalada e com o reservatório de até 3 km2.

Uma PCH não é uma central em tamanho reduzido, e sim uma concepção diferente e mais simples de uma central hidrelétrica. A agressão à natureza deste tipo de empreendimento é muito menor que o causado pelas grandes hidroelétricas. Sem dúvida, as PCH´s se constituem em uma fonte de energia elétrica que devemos apoiar, para a construção de uma matriz energética mais renovável e diversificada.

IHU On-Line - Como o senhor relaciona a questão energética e o desenvolvimento sustentável?

Heitor Scalambrini Costa - Muitos acreditam e manifestam a crença de que o mercado pode ser o responsável pela implantação da filosofia do desenvolvimento sustentável. Acreditam que com o decorrer do tempo, e com o surgimento de novas tecnologias, os problemas ambientais podem ser sanados e superados, resultando uma melhoria no bem-estar social ou mesmo a diminuição das desigualdades sociais.

O fato é que o desenvolvimento sustentável não pode ser tratado apenas como uma questão restrita a políticas ambientais e tecnológicas. Os problemas da desigualdade social e do modo de produção atual são os obstáculos para se alcançar uma forma de desenvolvimento capaz de preservar o meio ambiente e, ainda assim, proporcionar melhores condições de vida as pessoas excluídas do sistema de trabalho. Um modelo sustentável só será possível a partir da mudança dos modos de produção e de consumo da sociedade.

Como podemos observar em nosso país, a temática da oferta da energia traz questões de ordem política decorrente da forma como as diferentes opções energéticas são impostas à sociedade. O tratamento da questão energética continua a revelar a prevalência da visão liberal-mercantilista, que concebe o setor energético como um campo de relações de troca de mercadorias, com vistas à ampliação da acumulação de capital.

IHU On-Line – Qual é o papel das fontes renováveis de energia na matriz energética brasileira?

Heitor Scalambrini Costa - As fontes renováveis de energia, como biomassa, PCHs, eólica e energia solar, incluindo a fotovoltaica, têm e terão um papel fundamental a cumprir, pois aumentam a diversidade da oferta de energia; asseguram a sustentabilidade da geração de energia a longo prazo; reduzem as emissões atmosféricas de poluentes; criam novas oportunidades de empregos nas regiões rurais, oferecendo oportunidades para fabricação local de tecnologia de energia; e fortalecem a garantia de fornecimento porque, diferentemente do setor dependente de combustíveis fósseis, não requerem importação.

Além de solucionar grandes problemas ambientais, como o efeito estufa, as novas renováveis ajudam a combater a pobreza, e também podem aumentar o acesso à água potável proveniente de poços. Água limpa e alimentação cozida reduzem a fome (95% dos alimentos precisam ser cozidos antes de serem ingeridos). Pode haver a redução de tempo que mulheres e crianças gastam nas atividades básicas de sobrevivência (buscando toras, coletando água, cozinhando). Além disso, energia em casa facilita o acesso à educação, aumenta a segurança e permite o uso de mídia e comunicação na escola; diminuir o desmatamento.

Os estudos realizados pela WWF mostram que, num cenário elétrico sustentável, as fontes como solar, eólica, biomassa e PCHs podem fornecer até 20% da geração total de eletricidade, empregando oito milhões de pessoas e reduzindo as emissões dos gases de efeito estufa. Basta para isso que se retome a fase 2 do PROINFA (Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica), que foi abandonado pelo governo.

IHU On-Line - Como o senhor se posiciona em relação ao debate sobre energia no País? E a questão dos agrocombustíveis?

Heitor Scalambrini Costa - Em toda a discussão atual sobre energia no Brasil, se fala sempre na ameaça dos apagões frente ao crescimento econômico anunciado. Nem o governo, nem as autoridades do setor energético, nem os responsáveis pela administração do setor elétrico brasileiro, nem os distribuidores falam uma só palavra sobre economia de energia, racionalização do gasto de energia, eficiência, manutenção, modernização.

Só a obra nova parece interessar e ser capaz de gerar energia no Brasil. Cada vez é mais constante ouvir declarações governamentais e de “técnicos” de empresas estatais e privadas, demonstrando desprezo pelas energias renováveis e grande dose de ignorância sobre o debate energético contemporâneo. Diferentemente destas declarações preconceituosas sobre as energias alternativas como solução para o problema energético do Brasil, elas podem, sim, atender às necessidades e demandas futuras, diversificando e complementando a matriz elétrica. Ao estabilizar em torno de 70% de energia hídrica, os outros 30% podem ser perfeitamente adicionados por fontes renováveis, especialmente biomassa, PCH´s, eólica e solar – que nem foi incluída no PROINFA.

O PROINFA foi criado para estimular as fontes alternativas de energia, e que em cinco anos não realizou nem 40% das suas metas originais, relativamente banais, diga-se de passagem, de conseguir gerar 3.300 MW de eletricidade a partir de biomassa, eólica e hídrica com base em PCH´s.

Biocombustíveis

Vejamos o que está ocorrendo com relação à produção do etanol e do biodiesel. Com base no modelo do agronegócio, que destina grandes extensões de terra para a monocultura, procura-se transformar o Brasil em grande exportador de combustíveis líquidos com o apoio e ganância de grandes grupos econômicos e fundos de investimentos. Este modelo causa impactos negativos em comunidades camponesas, ribeirinhas, indígenas e quilombolas, que têm seus territórios ameaçados pela expansão do capital.

O que se verifica hoje é a compra de terras por estrangeiros (japoneses, chineses, americanos, franceses, holandeses e ingleses), que estão aportando no país, comprando usinas e formando um estoque de terras que rende uma valorização acelerada, na linha da especulação típica das zonas urbanas. O Brasil entra com a terra, a água e o sol, e mão-de-obra barata. Já eles colhem, exportam e vendem o produto, aplicando os lucros lá fora. Ficam com o verde da cana e dos dólares e, nós, com o amarelo da fome. Sem abandonar estas fontes de riqueza para o País, o modelo agrícola a ser adotado deveria estar baseado na agroecologia, no zoneamento agrícola e na diversificação da produção. Ele deve ser orientado por um sentido de desenvolvimento, que fortaleça a agricultura familiar e o desenvolvimento regional, e não pela lógica de querer, acima de tudo, transformar o Brasil em um grande exportador de combustíveis. Tem se afirmado com insistência, ao longo dos anos, que não existe solução para os problemas urbanos do Brasil, sem melhorar a qualidade de vida no campo. Assim, a questão crucial não deve ser plantar isto ou aquilo, mas sim “plantar para quê e para quem”? Essas questões, por sua vez, devem estar subordinadas a uma pergunta mais geral: qual padrão de desenvolvimento e de consumo a sociedade brasileira deseja? A produção de agro-combustíveis como etanol e biodiesel só faz sentido se melhorar a qualidade de vida do povo.

IHU On-Line – Qual é o interesse do Brasil em utilizar energia nuclear como fonte energética? Essa opção pode ser considerada um regresso?

Heitor Scalambrini Costa - O Brasil não tem necessidade de construir mais usinas nucleares para atingir a meta do PAC de aumentar a oferta de energia elétrica. Fonte de energia elétrica ambientalmente incorreta por causa dos riscos de acidentes e pela produção de resíduos radioativos, o uso da nucleoeletricidade pelo Brasil é estrategicamente incorreto, e
deveria ser definitivamente descartada.

Os defensores da tecnologia nuclear insistem que a energia nuclear não emite dióxido de carbono (CO2) e, por isso, é uma boa opção para enfrentar o aquecimento global. Os lobistas desta tecnologia não incorporam em seus cálculos o processo completo da energia nuclear, porque consideramos a mineração do urânio (combustível nuclear), o transporte, o enriquecimento do urânio, a posterior desmontagem da central e o processamento e confinamento dos resíduos radioativos. Esta opção produz entre 30 e 60 gramas de CO2 por quilowatt-hora gerado. Estes dados são da Agência Internacional de Energia Atômica, e é importante não omiti-los no debate sobre as soluções ao desafio energético do País. Ainda mais, porque o cálculo que faz hoje o Oxford Research Group chega até 113 gramas de CO2 por quilowatt-hora. Isso é aproximadamente a emissão de uma termoelétrica a gás. Portanto, aqui também há um mito, um afã de descartar, cortar e mostrar uma parcialidade da realidade desta fonte de energia. Também, o uso de água na tecnologia nuclear é alto e implica dejetos sólidos.



(Envolverde/IHU On-Line)

quarta-feira, 16 de março de 2011

Hiroshima nunca mais! Fukushima nunca mais!




Que o conhecimento deixe de ser a caixa preta protegida pelo sigilo comercial da propriedade privada

Carlos Walter Porto-Gonçalves

Durante anos cientistas e ativistas denunciaram os males do DDT, do agente laranja e outros subprodutos da indústria militar na “guerra contra as pragas”, enfim, na “luta pela dominação da natureza”, particularmente no mundo da agricultura e da pecuária. O argumento de que esses cientistas e ativistas era contra o progresso foi brandido ao paroxismo por um bem sucedido lobby das corporações do complexo industrial-financeiro-midiático-militar, nova forma complexa da burguesia característica de um capitalismo cada vez mais complexo (Casanova, 2005). Basta acessarmos o site da ABAG - Associação Brasileira de Agribusiness – em particular o link dos parceiros da ABAG e lá temos a composição desse novo bloco de poder que se reproduz no Brasil com especificidades de se juntar às velhas/atuais oligarquias latifundiárias. Pois bem, a vaca ficou louca, o frango e o porco gripados colocando em risco a saúde humana em nome desse complexo de poder que se nutre desse mito da “dominação da natureza”. Ora, a idéia de dominação da natureza é em si mesma uma profecia que não se pode cumprir na própria medida em que dominar é fazer com que alguém ou qualquer outro ser faça não aquilo que quer ou que seja, mas aquilo que outrem quer que faça. Assim, sejam os povos, etnias, classes, gêneros ou a natureza na medida em que são dominados implica que estejam sendo submetidos não ao que são, mas aquilo que querem que sejam. No mundo contemporâneo em que a ciência e seu subproduto a tecnologia são instrumentos da busca do aumento da produtividade tendo em vista a acumulação de capital, se produz um deslocamento da “promessa iluminista” de que a razão deveria substituir a religião em nome da emancipação humana. Essa “promessa” foi partilhada também por uma corrente hegemônica no seio do pensamento de esquerda que ignorou uma das mais importantes contribuições de Marx para a análise histórica, qual seja, de que não se pode dissociar nenhum fenômeno do seu contexto, em suma, da totalidade das relações sociais (e de poder). Assim como disse que “o direito não tem história” posto que são os homens (e mulheres) na conformação de suas relações sociais e de poder que o conformam, o mesmo se dá com o mundo técnico-científico. Marx nos deu uma bela demonstração dessa tese com sua crítica à Malthus e sua “lei geral da população” onde a produção de alimentos aumentaria numa progressão aritmética e o crescimento da população numa progressão geométrica. Assim como não há lei de população que escape às formações sociais que as engendram não há lei histórica do desenvolvimento das forças produtivas fora das relações sociais e de poder.

A ciência e a tecnologia cada vez mais são capturadas pelo mundo dos negócios, pelo mundo do capital, o que Milton Santos chamou “meio técnico-científico-informacional” para caracterizar o espaço geográfico contemporâneo. Como bem salientara o geógrafo brasileiro um objeto técnico difere de um objeto natural por ser um objeto impregnado de intencionalidade, ou seja, busca ser um objeto per+feito no sentido de um objeto previamente feito para controlar os efeitos de suas ações. Ocorre que o mundo não é passivo e mero objeto dos desejos dos que manejam esses objetos. O aquecimento global, por exemplo, é o efeito não desejado de uma matriz energética que tal como Prometeu quis acorrentar o fogo, mas olvidou das leis da entropia. Pensou que inventar o termostato era suficiente para que o motor devidamente programado numa variação máxima e mínima de temperatura fosse suficiente para não aquecer e, assim, dissipasse energia sob a forma de calor e deixasse de trabalhar. A natureza não tem termostato!

Enfim, o paradigma científico de matriz eurocêntrica está fundado num mito que está a serviço da acumulação de capital que é o contexto em que vem se desenvolvendo cada vez mais. Num mundo onde a riqueza se acredita mensurável quantitativamente (dinheiro) os números não têm limites e assim não haveria limites para intervenção no mundo (natural e social). A idéia de crescimento, subjacente à de desenvolvimento econômico embora sempre atenuado pelos seus defensores, mostra por todo lado seus limites. Esclareça-se, antes que algum gestor bem intencionado tente dizer quais são os limites, que limite é o cerne da política, arte de definir os limites e a democracia é quando todos dele participam.

Sabemos dos esforços, muitos bem intencionados, diga-se de passagem, dos que se dedicam à segurança das plantas das usinas nucleares, das plantas das refinarias e dos poços de petróleo, dos sistemas de navegação aérea todos sistemas de alta complexidade. Uma das características mais relevantes dos sistemas de alta complexidade é sua imprevisibilidade. Assim, caminhamos num paradoxo: quanto mais introduzimos uma nova variável, que bem pode ser uma nova informação sobre um acidente aéreo, num sistema complexo mais ele se aproxima da realidade que, por sua vez, é o mundo na sua imprevisibilidade.

Só uma crença acrítica na capacidade do sistema técnico controlar o mundo pode explicar o fato de um país como o Japão, situado no cinturão de fogo de contato de inúmeras placas tectônicas, tenha nada mais nada menos que 55 reatores nucleares como se isso fosse um detalhe. E olha que a palavra tsunami inventada pelos japoneses antes da era científica e tecnológica, foi simplesmente olvidada talvez porque as águas não pudessem ser tão facilmente controladas pela engenharia. Relembremos que as primeiras notícias dos terremotos e tsunamis que recém atingiram o Japão, veiculadas pelos interessados meios de comunicação procuravam nos tranqüilizar pela tradição arquitetônica dos japoneses de construir edifícios que balançam mais não caem. Até que tivéssemos que assistir ao trágico espetáculo de mortos ou de casas e edifícios completamente destruídos e alguns inteiros boiando nas águas. E, pior, de saber que reatores, como os de Fukushima foram danificados e tantas vidas estarão ameaçadas por décadas.

Basta de “vacas loucas”, de gripe do frango, de gripe suína, de DDT e agente laranja que matam! Basta de uma ciência sem consciência! Que o conhecimento deixe de ser a caixa preta protegida pelo sigilo comercial da propriedade privada! Que se ouçam outras matrizes de conhecimento que se forjaram com a natureza e não contra a ela, como a dos camponeses, dos povos originários e não se desperdicem essas experiências! Que o sofrimento dessas famílias nos ilumine nessa direção! Hiroshima e Fukushima nunca mais!

Carlos Walter Porto-Gonçalves é professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Pesquisador do CNPq e do Clacso. Prêmio Casa de las Américas (Ensaio Hisórico-social) em 2008 e Medalha Chico Mendes em Ciência e Tecnologia 2004. É autor de vários livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.Brasil de Fato

terça-feira, 15 de março de 2011

"Sustentabilidade é Ação" comemora seus dois anos de existência



Quero parabenizar e chamar a atenção para o nosso querido blog "Sustentabilidade é Ação ", que comemora esta semana seus dois anos de existência com o mais absoluto êxito em termos de divulgação de boas idéias e luta por causas ambientais, sociais e outras, mais do que justas.À Manuela e aos outros queridos companheiros que fazem o Sustentabilidade minha admiração e solidariedade.
Um abraço fraterno, Liete.

Tragédias naturais expõem perda da noção de limite


Por Marco Aurélio Weissheimer*

Nas catástrofes atuais, parece que vivemos um paradoxo: se, por um lado, temos um desenvolvimento vertiginoso dos meios de comunicação, por outro, a qualidade da reflexão sobre tais acontecimentos parece ter empobrecido, se comparamos com o tipo de debate gerado pelo terremoto de Lisboa, no século XVIII, que envolveu alguns dos principais pensadores da época. A humanidade está bordejando todos os limites perigosos do planeta Terra e se aproxima cada vez mais de áreas de riscos, como bordas de vulcões e regiões altamente sísmicas, construindo inclusive usinas nucleares nestas áreas. A idéia de limite se perdeu e a maioria das pessoas não parece muito preocupada com isso.

No dia 1° de novembro de 1755, Lisboa foi devastada por um terremoto seguido de um tsunami. A partir de estudos geológicos e arqueológicos, estima-se hoje que o sismo atingiu 9 graus na escala Richter e as ondas do tsunami chegaram a 20 metros de altura. De uma população de 275 mil habitantes, calcula-se que cerca de 20 mil morreram (há estimativas que falam em até 50 mil mortos). Além de atingir grande parte do litoral do Algarve, o terremoto e o tsunami também atingiram o norte da África. Apesar da precariedade dos meios de comunicação de então, a tragédia teve um grande impacto na Europa e foi objeto de reflexão por pensadores como Kant, Rousseau, Goethe e Voltaire. A sociedade europeia vivia então o florescimento do Iluminismo, da Revolução Industrial e do Capitalismo. Havia uma atmosfera de grande confiança nas possibilidades da razão e do progresso científico.

No Poème sur le desastre de Lisbonne, (“Poema sobre o desastre de Lisboa”), Voltaire satiriza a ideia de Leibniz, segundo a qual este seria “o melhor dos mundos possíveis”. “O terremoto de Lisboa foi suficiente para Voltaire refutar a teodiceia de Leibniz”, ironizou Theodor Adorno. “Filósofos iludidos que gritam, ‘Tudo está bem’, apressados, contemplam estas ruínas tremendas” – escreveu Voltaire, acrescentando: “Que crimes cometeram estas crianças, esmagadas e ensanguentadas no colo de suas mães?”

Rousseau não gostou da leitura de Voltaire e responsabilizou a ação do homem que estaria “corrompendo a harmonia da criação”. "Há que convir... que a natureza não reuniu em Lisboa 20.000 casas de seis ou sete andares, e que se os habitantes dessa grande cidade se tivessem dispersado mais uniformemente e construído de modo mais ligeiro, os estragos teriam sido muito menores, talvez nulos", escreveu.

Já Kant procurou entender o fenômeno e suas causas no domínio da ordem natural. O terremoto de Lisboa, entre outras coisas, acabará inspirando seus estudos sobre a ideia do sublime. Para Kant, “o Homem ao tentar compreender a enormidade das grandes catástrofes, confronta-se com a Natureza numa escala de dimensão e força transumanas que embora tome mais evidente a sua fragilidade física, fortifica a consciência da superioridade do seu espírito face à Natureza, mesmo quando esta o ameaça”.

A tragédia que se abateu sobre Lisboa, portanto, para além das perdas humanas, materiais e econômicas, impactou a imaginação do seu tempo e inspirou reflexões sobre a relação do homem com a natureza e sobre o estado do mundo na época. Uma época, cabe lembrar, onde os meios de comunicação resumiam-se basicamente a algumas poucas, e caras, publicações impressas, e à transmissão oral de informações, versões e opiniões sobre os acontecimentos. Nas catástrofes atuais, parece que vivemos um paradoxo: se, por um lado, temos um desenvolvimento vertiginoso dos meios de comunicação, por outro, a qualidade da reflexão sobre tais acontecimentos parece ter empobrecido, se comparamos com o tipo de debate gerado pelo terremoto de Lisboa.

A espetacularização das tragédias e a perda da noção de limite

Em maio de 2010, em uma entrevista à revista Adverso - http://www.adufrgs.org.br/conteudo/sec.asp?id=cont_adverso.asp&InCdMateria=1463 (da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), o geólogo Rualdo Menegat, professor do Departamento de Paleontologia e Estratigrafia do Instituo de Geociências da UFRGS, criticou o modo como a mídia cobre, de modo geral, esse tipo de fenômeno.

“Ela espetaculariza essas tragédias de uma maneira que não ajuda as pessoas entenderem que há uma manifestação das forças naturais aí e que nós precisamos saber nos precaver. A maneira como a grande imprensa trata estes acontecimentos (como vulcões, terremotos e enchentes), ao invés de provocar uma reflexão sobre o nosso lugar na natureza, traz apenas as imagens de algo que veio interromper o que não poderia ser interrompido, a saber, a nossa rotina urbana. Essa percepção de que nosso dia a dia não pode ser interrompido pelas manifestação das forças naturais está ligada à ideia de que somos sobrenaturais, de que estamos para além da natureza”.

Para Menegat, uma das principais lacunas nestas coberturas é a ausência de uma reflexão sobre a ideia de limite. É bem conhecida a imagem medieval de uma Terra plana, cujos mares acabariam em um abismo. Como ficou provado mais tarde, a imagem estava errada, mas ela trazia uma noção de limite que acabou se perdendo. “Embora a imagem estivesse errada na sua forma, ela estava correta no seu conteúdo. Nós temos limites evidentes de ocupação no planeta Terra. Não podemos ocupar o fundo dos mares, não podemos ocupar arcos vulcânicos, não podemos ocupar de forma intensiva bordas de placas tectônicas ativas, como o Japão, o Chile, a borda andina, a borda do oeste americano, como Anatólia, na Turquia”, observa o geólogo.

Não podemos, mas ocupamos, de maneira cada vez mais destemida. O que está acontecendo agora com as usinas nucleares japonesas atingidas pelo grande terremoto do dia 11 de março é mais um alarmante indicativo do tipo de tragédia que pode atingir o mundo globalmente. O que esses eventos nos mostram, enfatiza Menegat, é a progressiva cegueira da civilização humana contemporânea em relação à natureza. A humanidade está bordejando todos os limites perigosos do planeta Terra e se aproxima cada vez mais de áreas de riscos, como bordas de vulcões e regiões altamente sísmicas. “Estamos ocupando locais que, há 50 anos atrás, não ocupávamos. Como as nossas cidades estão ficando gigantes e cegas, elas não enxergam o tamanho do precipício, a proporção do perigo desses locais que elas ocupam”, diz ainda o geólogo, que resume assim a natureza do problema:

"Estamos falando de 6 bilhões e 700 milhões de habitantes, dos quais mais da metade, cerca de 3,7 bilhões, vive em cidades. Isso aumenta a percepção da tragédia como algo assustador. Como as nossas cidades estão ficando muito gigantes e as pessoas estão cegas, elas não se dão conta do tamanho do precipício e do tamanho do perigo desses locais onde estão instaladas. Isso faz também com que tenhamos uma visão dessas catástrofes como algo surpreendente".

A fúria da lógica contra a irracionalidade

Como disse Rousseau, no século XVIII, não foi a natureza que reuniu, em Lisboa, 20.000 casas de seis ou sete andares. Diante de tragédias como a que vemos agora no Japão, não faltam aqueles que falam em “fúria da natureza” ou, pior, “vingança da natureza”. Se há alguma vingança se manifestando neste tipo de evento catastrófico, é a da lógica contra a irracionalidade. Como diz Menegat, a Terra e a natureza não são prioridades para a sociedade contemporânea. Propagandas de bancos, operadoras de cartões de crédito e empresas telefônicas fazem a apologia do mundo sem limites e sem fronteiras, do consumidor que pode tudo.

As reflexões de Kant sobre o terremoto de Lisboa não são, é claro, o carro-chefe de sua obra. A maior contribuição do filósofo alemão ao pensamento humano foi impor uma espécie de regra de finitude ao conhecimento humano: somos seres corporais, cuja possibilidade de conhecimento se dá em limites espaço-temporais. Esses limites estabelecidos por Kant na Crítica da Razão Pura não diminuem em nada a razão humana. Pelo contrário, a engrandecem ao livrá-la de tentações megalomaníacas que sonham em levar o pensamento humano a alturas irrespiráveis. Assim como a razão, o mundo tem limites. Pensar o contrário e conceber um mundo ilimitado, onde podemos tudo, é alimentar uma espécie de metafísica da destruição que parece estar bem assentada no planeta. Feliz ou infelizmente, a natureza está aí sempre pronta a nos despertar deste sono dogmático.

*Publicado originalmente pela Agência Carta Maior - http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17534.

IMAGEM
Crédito: Alexandre G. Vilas Boas - Para conhecer o trabalho do artista acesse - http://www.frestaverde.blogspot.com/.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Castells, sobre Internet e Rebelião: “É só o começo”


Por Jordi Rovira, Universitad Oberta de Catalunya | Tradução: Cauê Seigne Ameni

Os meios de comunicação passaram semanas centrando sua atenção na Tunísia no Egito. As insurreições populares que se desenvolveram após o sacrifício do jovem tunisiano Mohamed Bouazizi, terminaram em poucos dias com a ditadura de Bem Ali e na sequência, como peças enfileiradas de dominó, com a “presidência” de Hosni Mubarack. Abriram-se processos democráticos em ambos os países. Manifestantes também saem às ruas árabes na Líbia, Iêmen, Argélia, Jordânia, Bahrain e Omã.

Em todos esse processos, as novas tecnologias jogam um papel chave primordial — em especial, as redes sociais, que permitem superar a censura. Ante esse desfecho histórico, Manuel Castells, catedrático sociólogo e diretor do Instituto Interdisciplinar sobre Internet, na Universitat Oberta de Catalunya, aprofunda a reflexão sob o que se passa e oferece chaves para entender um movimento cidadão que tira o máximo proveito dos novos canais de comunicação ao seu alcance.

Os movimentos sociais espontâneos na Tunísia e Egito pegaram desprevenidos os analistas políticos. Como sociólogo e estudioso da Comunicação, você foi surpreendido pela ação da sociedade-rede destes países, em sua mobilização?

Na verdade não. No meu livro Comunicação e Poder, dediquei muitas paginas para explicar, a partir de uma base empírica, como a transformação das tecnologias de comunicação cria novas possibilidades para a auto-organização e a auto-mobilização da sociedade, superando as barreras da censura e repressão impostas pelo Estado. Claro que não depende apenas da tecnologia. A internet é uma condição necessária, mas não suficiente.
As raízes da rebelião estão na exploração, opressão e humilhação. Entretanto, a possibilidade de rebelar-se sem ser esmagado de imediato dependeu da densidade e rapidez da mobilização e isto relaciona se com a capacidade criada pelas tecnologias do que chamei de “auto-comunicação de massas”.

Poderíamos considerar estas insurreições populares um novo ponto de inflexão na história e evolução da internet? Ou teríamos que analisá-las como conseqüência lógica, ainda de grande envergadura, da implantação da rede no mundo?

As insurreições populares no mundo árabe são um ponto de inflexão na história social e política da humanidade. E talvez a mais importante das muitas transformações que a internet induziu e facilitou, em todos os âmbitos da vida, sociedade, economia e cultura. Estamos apenas começando, porque o movimento se acelera, embora a internet seja uma tecnologia antiga, implantada pela primeira vez em 1969.

A juventude egípcia desempenhou um papel chave nas insurreições populares, graças ao uso das novas tecnologias. No entanto, segundo os cálculos de Issandr El Amrani, analista político independente no Cairo, apenas uma pequena parte da população egípcia dispõem de acesso a internet. Pensa que esta situação pode criar uma brecha – usando suas próprias palavras, entre “conectados” e “desconectados” – ainda maior que a que se da nos países desenvolvidos?

O dado já esta antiquado. De acordo com uma pesquisa recente (2010), da empresa informação Ovum, cerca de 40% dos egípcios maiores de 16 anos estão conectados à internet — se levarmos em conta não apenas as ligações domiciliares, mas também os cibercafés e os centros de estudo. Entre os jovens urbanos, as taxas chegam a 70%.

Além disso, segundo dados recentes, 80% da população adulta urbana esta conectada por celulares. E de qualquer maneira, estamos falando de um país com 80 milhões de habitantes. Ainda que apenas um quarto deles estivessem conectados, já poderia haver milhões de pessoas nas ruas. Nem todo o Egito se manifestou, mas uma número de cidadãos suficiente para que se sentissem unidos, e pudessem derrotar o ditador.

A história da brecha digital em termos de acesso é velha, falsa hoje em dia e rabugenta. Parte de uma predisposição ideológica de certos intelectuais interessados em minimizar a importância da internet. Há 2 bilhões de internautas no planeta, bilhões de usuários de celulares. Os pobres também têm telefones móveis e existem ainda outras formas de acessar a internet. A verdadeira diferença se dá na banda e na qualidade de conexão, não no acesso em si, que está se difundindo com rapidez maior que qualquer outra tecnologia na história.

Até que ponto o poder dispõe de ferramentas necessárias para sufocar as insurreições promovidas desde a rede?

Não as tem. No Egito, inclusive, tentaram desconectar toda a rede e não conseguiram. Houve mil formas, incluindo conexões fixas de telefone a numero no exterior, que transformavam automaticamente as mensagens em twetts e fax no país. E o custo econômico e funcional da desconexão da internet é tão alta que tiveram que restaurá-la rapidamente.

Hoje em dia, um apagão da rede é como um elétrico. Bem Ali não caii tão rápido, houve um mês de manifestações e massacres. O Irã não pode se desconectar a rede: os manifestantes estiveram sempre comunicando-se e expondo suas ações em vídeos no Youtube. A diferença é que ali, politicamente, o regime teve força para reprimir selvagemente sem que interviesse o exército. Porém as sementes da rebelião estão plantadas e os jovens iranianos, 70% da população, estão agora maciçamente contra o regime. É questão de tempo.

A mobilização popular através dos meios digitais criou heróis da cibernéticos no Egito — como Weal Ghonim, o jovem executivo do Google. Que papel podem desempenhar esses novos lideres no futuro de seus países?


O importante das “wikirrevoluções” (as que se auto-geram e se auto-organizam) é que as lideranças não contam, são puros símbolos.
Símbolos que não mandam nada, pois ninguém os obedeceria, eles tampouco tentariam impor-se. Pode ser que, uma vez institucionalizada, a revolução coopte se algumas destas pessoas como símbolos de mudanças — ainda que eu duvide muito que Ghonim queira ser político. Cohn Bendit era também um símbolo, não um líder. Foi estudante e amigo meu em 68, ele era um autêntico anarquista: Rechaçava as decisões dos líderes e utilizava seu carisma (foi o primeiro a ser reprimido) para ajudar a mobilização espontânea.

Walesa foi diferente, um vaticanista do aparato sindical. Por isso, tornou-se político rapidamente. Cohn Bendit tardou muito mais e ainda assim é, fundamentalmente um verde, que mantém valores de respeito às origens dos movimentos sociais.


A aliança entre meios de comunicação convencional e novas tecnologias é o caminho a seguir no futuro, para enfrentar com êxito os grandes desafios?


Os grande meios de comunicação não têm escolha. Ou aliam-se com a internet e com o jornalismo cidadão, ou irão se marginalizando e tornando-se economicamente insustentáveis. Mas hoje, essa aliança ainda é decisiva para a mudança social. Sem Al Jazeera não teria havido revolução na Tunísia.

Em um artigo intitulado “Comunicação e Revolução”, você recordou que em 5 de fevereiro a China havia proibido a palavra Egito na Internet. Acredita que existem condições para que possa ocorrer, no gigante asiático, um movimento popular parecido com o que esta percorrendo o mundo árabe?

Não, porque 72% do chineses apoiam seu governo. A classe média urbana, sobretudo os jovens, estão muito ocupados enriquecendo-se. Os verdadeiros problemas do campesinato e operários — ou seja, os verdadeiros problemas sociais da China — encontram se muito longe. O governo resguarda-se demais, porque a censura antagoniza muita gente que não está realmente contra o regime. Na China, a democracia não é, hoje, um problema para a maioria das pessoas, diferente do que ocorria na Tunísia e no Egito.

Esse novo tipo de comunicação, globalizada, atomizada e que se nutre se da colaboração de milhões de usuários, pode chegar a transformar nossa maneira de entender a comunicação interpessoal? Ou é apenas uma ferramenta potente a mais, à nossa disposição?


Já tranformou. Ninguém que esta inserido diariamente nas rede sociais (este é o caso de 700 dos 1,2 milhões de usuários) segue sendo a mesma pessoa. Mas não é um mundo exotérico: há uma inter-relação online/off-line.

Como esta comunicação mudou, e muda a cada dia, é uma questão que se deve responder por meio de investigação acadêmica, não através de especialistas em fofocas. E por isso empreendemos o Projeto Internet Catalunha na UOC.

Podemos dizer que os ciber-ataques serão a guerra do futuro?


Na realidade, esta guerra já faz parte do presente. Os Estados Unidos consideram prioritária a ciberguerra. Destinaram a este tama um orçamento dez vezes maior que todos os demais países juntos. Na Espanha, as Forças Armadas também estão se equipando rapidamente na mesma direção. A internet é o espaço do poder e da felicidade, da paz e da guerra.

É o espaço social do nosso mundo, um lugar hibrido, construído na interface entre a experiência direta e a mediada pela comunicação, e sobretudo, pela comunicação na internet.

Outras Palavras